2010-11-26

E agora morri

Eu vou explicar-te porque é que não me custa estar morto.
Não tenho frio nem fome. Principalmente não tenho frio da indiferença nem fome de conhecimento. Confesso que já me cansava querer conhecer tudo e saber que não podia, ler tudo e estar sempre mais por ler. Não tenho de acordar cedo nem sinto culpa por me deitar tarde ou dormir pouco, porque este sono vai ser longo e com toda a preguiça que nele caiba sem que ninguém me possa criticar por isso. Não estou a ver um dos poucos visitantes da campa repreender-me: "Já se fazia qualquer coisinha, não?" Deixarei de aturar os chatos e os parvos, mas vou sentir falta dos loucos, dos vivos em geral, dos velhos, das crianças, das mulheres e de alguns homens, salvo seja. Música e livros deve haver de sobra lá por cima. Vai ser curioso habituar-me a novos clichés, como, por exemplo, viver a morte um dia de cada vez. Posso deixar de me preocupar com o IVA - o último é o do funeral e já nem sou eu que pago. A igrejas, festas e romarias, lugares e ocasiões que, como sabes, me entediavam de morte (vá, faz uma pausa aqui, ri-te), repito, me entediavam de morte, só vou noutra forma de ser, para que nenhuma alegria deixe de ser vivida porque morri. Finalmente vou deixar de fazer exercício para emagrecer, porque isso virá naturalmente, mas principalmente porque essa parte, o corpinho, já não interessa nada. Aliás, se há por aí alguma inquietude pelas saudades da minha presença, pelos momentos em que se notará que a minha enorme mancha física (dois metros por dois) já não faz sombra a ninguém ou os meus modos brutos já não abanam os amigos, ou até se os cantinhos da casa se mostrarem vazios de mim, ou até as minhas frases já não encherem as redes ou livros novos, repara, isso é o menos porque, graças a Deus, quase ninguém leu o que eu escrevi e eu escrevi tanta, mas tanta coisa, mais ainda do que é possível a alma mais pessimista imaginar, que serão precisos anos para o ler e quando o corajoso que assumir a missão pensar que acabou ainda encontrará pedaços de frases e pensamentos, e se ainda assim acabar vai estar tão cansado de mim que me recordará com alívio. E os que, ainda assim, não lerem, também não se podem queixar de saudades, hipócritas, porque basicamente escrevi sobre tudo, passado e futuro, sim, futuro, pelo que a convivência comigo não vai acabar nunca. Mesmo para os mais íntimos,a equação é fácil: se não há fé, acabou mesmo tudo e ninguém sai prejudicado, fora o chão que me acolhe. Se há fé, então é claro, claríssimo, que eu neste momento estou nos serviços administrativos do purgatório tentanto negociar a entrada no céu e a burocracia é tal e a preocupação de evitar a vida eterna junto de alguns chatos que morreram antes de mim tão incomensurável que eu vou andar tão ocupado que nem sequer posso mandar sinais cá para baixo. Entretanto, se não me quiserem esquecer depressa, o que aconselho vivamente, agarrem-se às camisolas grossas que no Inverno eu usava cinco dias seguidos, e se o cheiro desaparecer abusem do meu perfume, como eu abusei. E chorem pelas vossas vidas, o que, sabe-se, faz bem. E se no fim de tudo for mesmo a saudade, a falta da minha presença chatinha, que vos vier visitar amiúde, então, por amor dos santos, vão lá buscar os meus livros e leiam e vão buscar os meus poemas e sintam e não se queixem, caramba. Porque se há uma virtude na morte é que, finalmente, há tempo para as pessoas pensarem no que o morto fazia e dizia e toda a pressa da vida abranda para recuperar todos os momentos do defunto. A morte é, pois, como concluiu São Francisco de Assis, e eu também (e ninguém me fez santo por isso), o momento mais alto da vida. Finalmente calam-se todos, morto incluído, e conseguem ouvir. E reflectem e sentem e valorizam cada detalhe. E os que nos sucedem terão sempre o tempo ocupado a tratar de partilhas e afins, e eu sempre gostei de uma partilha rasgadinha, escaldante. E quando a partilha acabar, há sempre um nome para propagar e projectos deixados a meio para concluir. Portanto, morrer é uma canseira. Mesmo a descida à terra: acho-a bela desde que vi a avó descer num dia de chuva, o cheiro da terra já tão parecida com o barro a cair sobre o caixão, é bonito e completo o regresso ao lugar de onde se veio, é bom ficar fisicamente ali sem sentir nada e deixar tudo o que importa de nós viajar infinitamente nos corações e nas cabeças dos que nos amaram e mesmo dos que não nos amaram. Viver eternamente, pois. Concluo já, senhor presidente. Concluo dizendo que me vai saber bem ocupar-vos até à missa de mês e ser esquecido daí para a frente e ficar em paz. E ser visitado nos finados. E se algum de vocês insistir em me convocar, não faz mal. Afinal amei, amei muito, fui amado, muito amado, e, sempre que me lembrei, fui bom moço e quis saber de todos. Fiz o filho, a mulher, o livro e agora serei árvore. Magnólia.

2010-04-07

Por Portugal 24 anos depois

Hoje fui treinar voleibol com quarentões e acabei inesperadamente a jogar contra a selecção nacional de cadetes femininos, e estou com o coração apertadinho porque me lembrei de que foi precisamente há 24 anos, com a mesma idade e nas férias da Páscoa, que vesti aquela mesma camisola naquele mesmo sítio num estágio de Portugal. E lembro-me das possibilidades que tinha nos olhos e que revi naquelas meninas.

Foi assim o ano passado, e poucos se aperceberam.
Voltei a jogar voleibol depois de 20 anos parado. E o meu corpo começou a lembrar-se das formas geométricas daquele jogo fantástico, e eu perguntei a mim próprio como fora possível estar tanto tempo afastado da quadra, das zonas, das redes, das varetas, dos blocos, dos amortis, dos mergulhos, das curtas, das tensas, de tudo.
Com dezassete anos tinha treinos em Espinho às 10 da noite. Regressava a casa no comboio da meia-noite e meia e só jantava à uma da manhã.. Estava diminuído por sucessivas lesões e cansado desse ritmo. Quando fui estudar para Coimbra, deixei tudo, aliviado.
A minha carreira tinha acabado um ano antes, precisamente nesse estágio da selecção nacional de 1986. Depois de cumprir o sonho de ser convocado pelo falecido Sálvio Nora, parti o pé numa brincadeira estúpida com o meu próprio irmão e nunca mais voltei a ser um atleta completo. Tive sucessivas rupturas de ligamentos. Passava mais tempo de muletas do que a jogar.

Esse estágio da selecção nacional foi, apesar de tudo, marcante na minha formação como homem e desportista. Partilhar esses breves dias de "tropa" com adversários que defrontava desde pequenino, numa altura em que o Voleibol era amadorismo no seu estado mais puro, deu-me amigos a cujas carreiras nunca mais fui indiferente.

Homens sábios dizem que o que distingue o voleibol de outros desportos é que, se for alcançado o objectivo máximo, que é manter a bola a no ar, existe uma comunhão absoluta entre os dois lados do campo. É verdade: o primeiro objectivo do voleibol é manter a "bola a voar", e só depois colocá-la dentro do campo adversário. Quando a bola voa durante longos minutos sem cair (o "rally") o jogo atinge a sua beleza máxima. E há verdadeira comunhão entre adversários.

Recordo-me de outras vezes em que estas meninas da selecção nacional de cadetes se cruzaram connosco naquele pavilhão, e do (nosso) secreto desejo de partilhar outra vez o campo com pessoas com um mundo de possibilidades pela frente.
Hoje foi o dia.

Há 24 anos atrás, envergando uma camisola parecida que dizia nas costas "Portugal Voleibol 1988" (era esse europeu que estávamos a preparar) não tive o privilégio de defrontar antigos jogadores. Não sei se estas meninas de hoje valorizaram a oportunidade. Eu senti-me transparente. As nossas adversárias desta noite, concentradas e empenhadas nas suas carreiras e no seu potencial, não nos "viram", realmente, do lado de lá. Mas eu vi-as a elas. Vi o seu olhar límpido, puro, cheio de possibilidades, e estar ali a participar no seu crescimento de uma forma tão plana, tão igual, com os corpos a mergulhar ao encontro da mesma bola, o suor em atrito com o chão, as mãos no ar, o balanço dos braços, afinal os vinte e quatro anos que para mim passaram num repente não significarem abismos ou fronteiras, e nós todos, sem excepção, estávamos num estado de graça que parecia um qualquer delírio comatoso de homens que não sabiam exactamente o que fazer.

A verdade é que nos sentíamos tão privilegiados que ninguém soube desempenhar cabalmente o seu papel, e isso acabou por abonar em prol de um inesperado equilíbrio que nos trouxe a humildade que as pessoas de quinze anos, sei-o aqui como nas maravilhosas aulas de Direito que dou nas escolas a rapazes e raparigas da mesma idade, convocam para nós.

Porque eles têm a vida pela frente, uma enorme e difícil interrogação que já não nos atormenta, mas devia.

Não que tenhamos perdido o jogo, mas porque essa possibilidade era real, foi com humildade e admiração por aquela forma pura de se ser, pelo espelho de um passado que me parece tão perto e tão breve, que valeu cada set, cada ponto, cada momento.

Obrigado, meninas.

Pedro Guilherme-Moreira

PS: Deixo uma lista aproximada das nossas adversárias, para que vejam com o que lidamos hoje, entre os 15 e os 17 anos:). Uma delas tem mais um centímetro do que eu:).


Ana Monteiro - 29.07.93 - 176 - SC Arcozelo / Eduarda Duarte - 28.07.93 - 186 - Leixões SC / Mariana Filipe 14.02.93 - 174 SC Braga / Mafalda Silva 7.05.92  - 185 - Leixões SC / Joana Polido - 2.08.92 - 194 - GD Sesimbra / Joana Silva - 7.03.93 - 184 - Leixões SC / Marta Hurst - 7.07.92 - 182 - CA Trofa / Joana Neto - 4.01.93 - 175 - Leixões SC / Carina Moura - 17.10.93 - 184 - Atlético VC / Elsa Moreira - 5.0592 - 177 - Atlético VC / Patrícia Neves - 14.06.93 - 176 - Col. Calvão / Mariana Meireles - 29.02.92 - 173 - Leixões SC / Treinador Principal: Fernando Luís / Tr. Adjunto: Filipe Lacerda

2010-02-04

Testamento

Quando eu morrer, quero coisas simples.
Quero que o meu epitáfio seja publicado na secção cultural de alguns jornais e diga simplesmente "Morreu o escritor mais pequeno do mundo. Tinha quase dois metros de altura e mais de cem quilos de peso e morreu como outra árvore qualquer: erguido. Quer que se esqueçam do seu corpo e nunca sejam obrigados a ler os seus livros, mas que os releiam à luz da sua ausência."
Quero que me americanizem o velório e o funeral, deixando as pessoas expressar-se, usar cores como o vermelho e escrever-me bilhetinhos que podem deixar nos meus bolsos ou forrando o meu caixão. E que me vistam uma roupa confortável que me tivesse posto bonito em vida, e nunca fato e gravata. Imprimam este Testamento e o posfácio ("E agora morri") e coloquem-nos visíveis, num suporte, junto ao morto, para que as pessoas saibam que rir durante o velório é altamente recomendável e as beatas de serviço o registem no seu diário de bordo.
Aos pés do caixão, quero a toga de advogado e a capa de Coimbra, e que tragam para o enterro mais capas e togas negras de todos os lados e credos.
Como único momento solene, que passem uma boa gravação da "Lacrymosa" quando o caixão estiver a entrar na igreja, tal como fazem com as marchas nupciais à luz do vestido branco das noivas.
Quero funeral sem missa, com os Azeitonas a cantar o "Anda comigo ver os aviões"(lamento, mas tem a pureza da minha terra e das aspirações mais simples) ou só a harmónica do Salsa - já que o Brel não pode estar -, e que por favor levem a minha miúda à América se eu não o conseguir fazer até lá.
E chamem os miúdos da Xico d' Holanda (voltem, "Ineses"!), da Inês de Castro, do Colégio dos Carvalhos, do Bonança, da Adriano Correia de Oliveira (Esposende) e da Avelar Brotero (a Micaela Marcedo será sempre a minha leitora mais importante, porque não gostou de tudo depois de ter gostado muito) para dar comprimento ao tempo - e que se cumpra, podendo (se for dia de Pinheiro, deixá-los, mas que se avise a escola e se tire partido do silêncio: vão dizendo em toda a parte, enquanto os bombos ressoam,
o escritor morreu
o escritor morreu
o escritor morreu).
Quero ser enterrado numa campa de cimento onde as pessoas possam escrever livremente, e não quero flores ou decoração alguma, apenas uma fotografia anual aos escritos da campa e à Magnólia que eu gostava que fosse plantada no centro dela, e que crescerá comigo, porque dá flores no Inverno e eu também. E no acto do enterro quero que uma galega toque na sua gaita de foles uma breve melodia lenta e triste para que a vida que acabou de cessar ganhe profundidade. Quero que seja o Canto da Pena, do Milo Romero. Quero que se esqueçam de mim no Verão e se lembrem e riam de mim no Inverno por eu gostar da chuva de sul, que afasta o frio e purifica a alma.
Quero que as pessoas se reúnam para comer e beber à minha custa logo a seguir ao funeral, e que passe o "Creep" dos Radiohead em fundo, mas na versão do Clint Mansell, que é uma música que me dá sempre a perspectiva correcta da vida.
Não quero culto de fotografias minhas, mas que usem e abusem de todos os meus textos, onde disse basicamente tudo o que queria dizer a todas as pessoas do mundo que alcancei. Quero sim que espalhem pelo aparador fotografias de todas as divas de que falei no meu blogue e que lhes escrevam com uma cópia não traduzida deste Testamento, mas, e isto é importante, no centro do aparador, entre as divas, tem de ficar a mais bela fotografia da minha mulher. Pode ser aquela de Veneza, em que ela, no quarto do Rialto, ofusca o pôr-do-sol ou a de Monforte da Beira onde, mais madura, estão tão bonita como é ao vivo.
Num das pontas, se eu algum dia a encontrar, quero um fotografia do outro amor da minha vida, que para mim é o mesmo e só ficou vago para a minha companheira de uma vida porque não se podia cumprir tão cedo, a menina de cabelo curto de Olhão, que não é segredo, mas que eu nunca disse ou contei a não ser aqui; se eu a não encontrar, que fique a moldura só com a frase "menina de cabelo curto de Olhão".
Gostava de lá ter fotografias da Catarina Lacerda, da prima Sónia Ungaro, da Micaela Marcedo e da colega Anabela De Almeida Rodrigues, também, porque foram as mulheres não minhas que melhor me souberam ouvir durante a vida. E a fotografia de um homem que soube ser meu amigo a sério: Carlos Nuno Granja. Digam baixinho à doce Cristina Graça e que ela e a sua Luz de Tavira se encham dos seus próprios nomes. E dos canais e moliço de Aveiro venham navegando a Mariline e a Cristina Vicente que não me deixarão nunca curto na forma de ser e na judiciosa e bem humorada ontologia da Joana Rita Sousa fiquem as gargalhadas e abraços que demos conhecendo.

E, sem culto, deixem a Mar Babo fotografar a essência, a alma, as sombras, a luz, talvez a clareza, até que ascenda, talvez a clareza, sim, antes e depois, se ela ligar as imagens desse dia às palavras de sempre. E chamem o Paulo Lima para ele explicar o que são dois verdadeiros amigos feitos de coisas tão diferentes, unidos numa essência qualquer que com gargalhadas e palavras terminadas em "ão" será decifrada. E chamem a Clara Amorim, chamem depressa a Clara e peçam-lhe que seja na morte o arauto que foi em vida e que faça tremer o mundo dando ao pobre poeta maior tamanho do que a sua real pequenez. E irrompam numa aula da Cláudia Monteiro e digam-lhe que faça o corpo do morto apenas pelas palavras e pela memória que lhe deixou e que depois o leve pelas salas de todos os colégios e escolas que puder e enquanto a voz lhe der. E digam à Alexandra Gonçalves da Rádio Nova que morreu o companheiro de recreio - que ela há muito sabe que não são só palavras, é a carne da rádio no silêncio dos microfones abertos. E à vizinha Andreia Carmo, o anjo a norte, que pequenina se agarrava às minhas pernas e nunca largou. À Bárbara Loução porque tudo ficou incompleto sem a mana a partir antes de mim e ela sabe porquê. À Tânia Ganho porque não tinha passado o muro sem ela, à Ana Ganho porque me segurou deste lado.
Quero que todos se riam do gigante que caminhava e corria de forma pendular e com os pés para o lado e passava a vida a querer arrancar aos outros, a toda a força, o mesmo riso que queria para si vida e morte.
Quero que no dia dos meus anos se reúnam os meus amigos (chamem-lhe o dia do escafandro-mor) para se celebrarem a si próprios e ao que de bom me deixaram, e que propaguem isto pelas gerações, nessa ou na data do último a morrer, sem nunca esquecer o nome de cada um. Não se esqueçam de me guardar sempre um lugar no almoço dos escafandros coimbrãos na véspera de Natal, mesmo que o gerente de sala desconfie de que não vou aparecer.
Quero que os meus editores e herdeiros se aproveitem da minha morte para fazer dinheiro e ficar mais confortáveis, mas falem primeiro à Helena Rafael, à Isabel Cristina Mateus e ao Hugo Xavier, que ninguém na literatura tem mais inteligência e coração do que eles (só se for a Mata Pais de Oliveira e a mana Ana, gostava que as chamassem também porque se tornaram tão importantes), e deixem-nos decidir em conjunto, quero que os jornalistas meus amigos - em particular a Ana Lourenço, a Alexandra Tavares-Teles, o João Paulo Baltazar e a Ana Patrícia de Carvalho - ultrapassem os conflitos de interesse e sejam capazes de citar o meu nome na morte, porque não o permiti em vida, e essa citação final sirva a quem leve a minha luz nos olhos, seja do meu sangue ou não, sirva a que quem leve a minha luz nos olhos possa pôr os pés nas minhas pegadas.
Arranjem à Cristina Marques uma Magnólia e que a Carla Flores, a minha visceral, a ajude a erguer-me no jardim dos poetas. Liguem à Susana Fernandes, a menina da Madeira que já era minha amiga quando o mIRC era rei e se ligava a net a 28 sobre Windows 2 para lhe lembrar que ela nunca deixou de ser a moreninha deslumbrante que me ensinou que o oceano que nos separa se vence sempre, como a Carol e a Lívea ainda mais longe, lá na Poços de Caldas do sul de Minas Gerais onde fui feliz e fiz felizes. Happy. Peçam ao senhor Conselheiro Cravid para dançar em cima da campa a amizade que sempre se elevou desde o carro do cortejo. E que traga com ele a Carolina Cunha, a Eugénia, a Isabel Emídio, a Cláudia Ferreira, a Lígia e os que nunca debandaram, Xana e Matias! E, entre as colegas de curso, quero que a minha fundamentalista, vestida com a minha camisola e o emblema do nosso ao peito, seja a descoberta do século: a suprema jornalista da RTP Andrea Neves, que é tanto!
À troglofofa Teresa Pinto Mendes incumbam de voltar a mim anos mais tarde para lembrar os outros porque ela será a primeira a não esquecer. E à imperial Sandra Ribeiro, que governava melhor o Palace das Termas de São Pedro do Sul do que a própria Dona Amélia e não falha que tivessem a mesma altura e realeza, peçam para voltar despojada e doce a falar do que eu fui de passagem para sempre, como ela para mim. À "Fofinha" Mafalda cabe o coração da livreira que não quis ser por um entendimento maior do amor. À mais pequenina, também Mafalda, mas Eiras, espera o legado que entendeu em primeira linha: que lhe suceda, podendo. E ao doloroso sorriso de Matilde o abraço de sempre, onde terá de trazer a Inês e a Luísa Teixeira.
E nunca se esqueçam de permitir à Catarina Lacerda, ao Hugo Xavier, à Helena Rafael, à Isabel Cristina Mateus e à Vitoria Falabella o acesso a todos os meus inéditos, que saberão tratar e seleccionar com a curiosidade infinita do olhar, o cós subido, a postura luminosa e o amor. Mas não decidam nada antes de a mais brilhante flanêur das artes (literatura incluída) pousar os lábios no maço digital e o provar gerando o entendimento do globo: não deixem sair nada sem a Ana Snow comover e agregar e explicar o que nessas palavras vem do princípio ao fim do mundo e do fim ao princípio outra vez: ouçam-lhe os cálculos, à Ana, que à Ana grandeza não lhe faltará nunca. E se ela precisar de mais destempero apresentem-lhe à outra sublime e peçam-lhe que venha sem marcação: a Cláudia Coimbra.

Peço à Vitoria que guarde este testamento na última forma conhecida e o comunique à Vera e ao Gui, porque estarão com uma tristeza funda e confusão na alma e talvez nem saibam onde está o Testamento, o verdadeiro, que é este. Que riam, caramba, que conservem o corpo mais uns dias sempre a rir para dar tempo de chegar a isto.
E enviem o tal epitáfio com este Testamento em anexo a todos os meus contactos pessoais e profissionais e a redes sociais, para lhes dar a oportunidade de se materializarem, contrariando os maus augúrios dos que nos desmancham o prazer de ter junto a nós, todos os dias, as palavras de centenas de pessoas que se dizem, e podem ser, nossos amigos, mesmo depois do fim. Que se registe que nenhuma amizade é virtual. E que reja o que cada um sente, apenas.

E fique a família Botelho de Sousa a saber que os sobreviventes da Casa Moreira têm neles o conforto formal, mesmo que já tenham mandado o Direito às malvas, o abraço do "não te preocupes com nada, Vera", o colo, e na pessoa da sua artista maior, Rosarinho, que há-de ter perdido o diminutivo mas nunca a excelência, a explicação da morte do escritor pelo seu traço.

Antes de ser deitado à terra o tempo é curto, e, se nada ou pouco disto se cumprir, deixem estar: agora temos a eternidade.

Digam pelo menos ao Fernando Alves que está obrigado a sobreviver-me, por razões de ordem prática: uma elegia dele levanta qualquer morto, devolve-lhe a vida: e era a elegia dele que queria, precisamente por não me conhecer por fora, mas chegar mais depressa por dentro. Uns sonham com férias nas caraíbas, Ferraris, diamantes, eu com uma elegia do Fernando Alves. Com a sublime Maja Stojanovska a acompanhar ao piano.

Finalmente, se não se publicou, que se publique enfim o meu Pequeno Tratado sobre o Amor, na versão original (porque também há uma versão adaptada à mãe Mena) e que se alerte a Lenea Andrade, a menina de cabelo curto de Olhão que afinal foi encontrada, que o tratado lhe pertence. E que venha em abraço com o superlativo companheiro, João Medina Borrego Linhan.

Quero que saibam que este Testamento é apenas para que o sonho se cumpra, por não ser ninguém e conhecer o pó.

E quando estiver lá por cima, aí sim, farei papel de estrela.

Pedro

PS: Este é um texto em aberto, enquanto eu puder escrever nele.

PS2: Vou afixar este Testamento na Junta de Freguesia de Valadares, para se irem habituando à ideia da minha Magnólia no centro da campa;):):