2013-09-20

A imperatriz Felisbela

Quando estamos encostados ao muro de um funeral de uma parte de nós o que se abate sobre o corpo são todas as vidas que estão dentro da nossa. Pode acontecer, por breves momentos, que nos apareça perante os olhos a própria mortalidade, mas o que nos violenta é a imagem de todos aqueles que ali estão, com roupas escuras, que estavam dentro da nossa vida e agora andam nas margens. Há uma alegria de regresso misturada com a tristeza da partida. Hoje, enquanto deitavam a avó à terra sob um imperial sol de Setembro, eu vi à minha frente um dia de festa na mansão da avenida da república que hoje é um prédio amarelo com o modelo continente. A Guidinha tão depressa estava debaixo do meu abraço como às ordens da avó na cozinha que tinha uma chaminé tão grande que ocupava toda a parede leste, a Ana Maria hoje a dar-me um beijo pela primeira vez e a caminhar com dificuldade a chegar-se à porta da cozinha e a repreender o primo Gonçalo no longo e escuro corredor que não subisse às paredes, eu a correr à volta da casa com o primo Miguel para ver os perus e o fascinante aterro do lixo, nunca mais vi uma casa com um aterro de lixo, a cave dos carros e no primeiro andar o quarto do tio Tó com os discos todos do mundo, o quarto da avó que era tão bonito e fazia um "L" com uma salinha e a casa de banho privativa, de azulejos pretos e brancos muito brilhantes e ricos, imperial como o sol, imperial como era sempre a avó quando entrava na cozinha e dava ordens, o avô Caius a mandar calar toda a gente para ver a Gabriela, o tio Paulo abraçado à tia Luísa, é tão bonita a tia Luísa, e as outras tias e a mãe à mesa a trocar piadas sexuais com os outros tios e o pai se o avô Caius se retirasse para a salinha depois de ver a novela, o Manelinho no sofá, o Dox a correr e a ladrar no maior terraço que uma casa pode ter, maior ainda do que isso, quem não conheceu a mansão bordô da avenida de gaia? A Guidinha vai para os noventa anos e nunca me levantou a voz ou baixou a ternura, a ti Detinha e a Madrinha são as manas da avó e o tempo às vezes é bom, deixou-as iguaizinhas a ela, será que é desta que eu vou cumprir a promessa e regresso às mãos doces da Madrinha, ao sorriso mais belo do mundo, será que ela me mostra a pedreira da madalena ao fundo do quintal? Quando a primeira terra caiu na madeira eu ainda não tinha chorado, só quando cheguei ao café e olhei para dentro e lá estava ela, a avô Belinha, imperial, a entrar na sua cozinha e a comandar a Guidinha e a Ana Maria e a casa a ferver de nós todos que aqui estamos, cinzentos, a pensar que a vida é isto e que, ainda que não volte atrás, nos podemos lembrar dela, nos podemos lembrar de todos quando estávamos dentro uns dos outros, e Felisbela, que nos amou a todos com a mesma pose imperial com que comandava a  cozinha, sobe aos braços do seu imperador.
 
PG-M 2013
 

2013-08-05

A janela redonda de Al Berto

Estas são as frases que me cabem no processo secular de desmaterialização e ascensão de um contemporâneo a mito. Pressinto que - embora historicamente implicado e demasiado perto - os anos oitenta do século vinte foram os anos de implosão, depois de ter explodido a condição humana na sanduíche das duas guerras com recheio de grande depressão, depois de ter explodido o sexo nos anos sessenta e setenta, a estética dos anos vinte aos anos setenta, todas as correntes artísticas até aos anos setenta, todo o mundo e todo o século implodiu nos anos oitenta: a indeterminação estética que ainda hoje nos faz sorrir, tão rica e diversificada que hoje nos devolve todas as modas a pretexto de regressos nostálgicos que são um pouco mais do que isso: nós, que os vivemos, e as novas gerações, que os não viveram, adoptam os oitenta sem vergonha e até com voracidade. Implodiu a liberdade sexual com a SIDA e implodiu a homofobia. Claro que não se advoga aqui que nos curámos de todos os sintomas: o ser humano e o mundo que deturpa para si tem tendência a adaptar-se e a ser ecléctico. Convoco a homofobia para voltar à célebre sessão de leitura da poesia do Al Berto pelo próprio no início dos ano noventa no bar Dom Dinis, e que nos voltou via youtube (aqui) de uma forma assombrosa, como se tivéssemos viajado no tempo, eu que precisava de saber o que afinal se tinha passado lá dentro quando vi os meus amigos sair esbaforidos do Dom Dinis dizendo que o Al Berto tinha sido insultado por um grupo de putos que não o deixaram ler a poesia. E devolvido os insultos. Ele não era realmente popular entre os estudantes universitários, fechado, diferente, pouco simpático, mas essa violenta noite despertou em mim a curiosidade de o seguir vida fora, apesar de tudo. Essa adopção literária não culminou na sua morte, mas na publicação dos Diários do Al Berto pela Assírio & Alvim, e nas longas sessões de leitura da primeira parte dos ditos na Almedina do Arrábidashopping.
 
Em particular as páginas escritas na Rua do Forte, em Sines, a olhar pela janela e a ver o mar, ou a não abrir a janela porque tinha muito frio e se sentia febril e doente, porque tinha muitas dores ou estava deprimido, para depois a voltar a abrir num dia azul, perfeito, descrevendo o movimento de barcos no horizonte ou o minimalismo da neblina e as pinceladas fantasmáticas que só os seus olhos viam, e quando o Al Berto dizia que ia apanhar o expresso para Lisboa eu só desejava que ele voltasse à Rua do Forte e àquela janela, que voltasse a sentir frio, calor, excitação, exaltação, depressão, que voltasse ao que o mar lhe devolvia, às gaivotas, aos barcos, ao sofrimento, à esperança. Com a ajuda da jornalista Raquel Ribeiro, que tem os seus laços com Sines e com o trabalho que fez sobre o Al Berto, descobri o lugar exacto dessa minha memória literária. Ia em família e pedi para me deixarem sozinho ali, enquanto esperavam pelo péssimo e caro (Al Berto teria dito assim) arroz de marisco do Varanda do Oceano, que terá tido melhores dias. Foram quinze minutos encostados à janela redonda, que fica ao nível do rés do chão: foram literariamente perfeitos e, por mais que eu saiba que não foi assim, ou pelo menos não foi sempre assim, para o Al Berto, a morte, a desmaterialização, a excelente edição dos diários com o toque da poetisa Golgona Anghel, fizeram o Al Berto subir, definitivamente, à condição de estrela, a tal que Saramago dizia que à terra pertencia. Eivo agora este texto das imagens que Al Berto via, tomadas com o cotovelo encostado à moldura da janela redonda da Rua do Forte. E embora fosse melhor que Al Berto cá estivesse, qualquer escritor aspira ao leitor que o tenta sentir desde dentro e através dos tempos. Assim.
PG-M 2013

2013-05-12

Desporto-desbenfica

Raramente escrevo sobre desporto, mais raramente ainda sobre futebol. Mas como nasci no Porto e aprendi a amar o FC Porto, onde treinei e onde o meu pai foi internacional e treinador, assim como um irmão, como estudei em Coimbra e aprendi a amar a Académica, como vivo em Valadares e estou todo orgulhoso que as meninas vão disputar a final da Taça de Portugal de futebol feminino, como estou delirante que o clube local de voleibol, o Atlântico da Madalena, tenha sido campeão nacional da segunda divisão e que o meu filho, pelo mesmo clube, vá disputar no próximo fim-de-semana o título nacional de infantis, onde provavelmente haverá um grande derby Atlântico-Benfica, pensei em escrever só isto, que no fundo é só o que me importa em qualquer actividade humana: ser "anti" o-que-quer-que-seja é ser descompensado emocional e mental - deixei de ter dúvidas sobre isso. Desejar o mal, não só a pessoas, mas a instituições, é precisar urgentemente de terapia. Usar cachecóis a dizer "Merda é Benfica" patológico. Não é por sermos um país pequeno e Lisboa ser, finalmente, uma belíssima cidade para qualquer tripeiro, e o Porto ser, finalmente, uma belíssima cidade para qualquer alfacinha. É porque os limites da natureza humana estão também nestes detalhes. A minha alma transporta uma comoção pelo granito que eu sinto num certo sotaque largo de quem ama o clube local, mas que não está em lado nenhum de quem odeia, de quem se esquece que em todo o lado, na sua vida, está uma pessoa que tem outra paixão e outra cor e que não é isso que a define, mas a distância ao centro das coisas. Na Casa do Benfica em Luanda os portistas e os benfiquistas fizeram ontem a festa, choraram, voltaram a fazer a festa e no final abraçaram-se, como em minha casa, como em muitas casas. Quanto mais nos afastamos do centro do furacão, quase sempre urbano, mais se limpa o cenário e depuram as pessoas, mais ressalta o bom e esquece o mau, mais fica  o importante e evanesce o inútil. Os animais que agridem jornalistas e vão insultar o seu melhor adversário, o adversário sem o qual não haveria nem jogo nem vitória, e atiram pedras a quem faz o que sente ou deve, esses, não são nada, não são adeptos de nada, mas a vergonha das camisolas que abusivamente envergam. Eu, por causa deles, não me quero esquecer dos dias em que fui de mão dada com o meu pai para dentro dos pavilhões e dos estádios das antas, os dias em que, miúdo, me agarrei fascinado às pernas de um Freitas, de um Teixeira, de um Cubilhas, de um Fonseca, o dia em que os ouvi chorar porque aquele jogador chamado Pavão, o que tinha caído no campo aos treze minutos da jornada treze de um Dezembro aziago, tinha morrido, o dia em que me deram a camisola azul e branca para a defender, como se fosse a mesma do meu pai, como foi a mesma que, uns anos depois, o meu pai me ofereceu quando, já veterano e a jogar noutro clube, perdeu um set a zero com o mesmo FCP. E eu comecei a jogar voleibol com essa mesma camisola número três desse mesmo clube. Dentro de um pavilhão das antas contei vinte quedas, vinte, na minha bicicleta amarela, no dia em que o meu pai, antes do treino do FCP, me tirou as rodas. Tinha seis anos. E o brilho nos meus olhos era o mesmo quando o meu pai recebeu em casa uma chamada para treinar o FCP. E aquele homem careca meio curvado que ontem estava comovido, de pé, junto ao banco do FCP, logo a seguir ao golo do Kelvin, o médico Nelson Puga, que era jogador do meu pai em 1978 e quase se sentava no chão antes de cada serviço, curvado, de cócoras, paralelo à linha de fundo do court de voleibol, esticava o braço direito e fazia um arco sobre o braço esquerdo e a bola voava em elipse, era um gesto belo, belo, belo. Tão belo que nenhuma dessas feras criminosas que espumam contra os outros pode apagar a essência do que isto é, e que não se separa, nem nunca se separá, em Porto e Benfica. São memórias de luta, de músculo, de crescimento. Que a queda de Jesus sobre os joelhos deixou no coração de todos.

PG-M 2013
fonte da foto (jornal "A Bola")