2015-12-09

Se me queres ouvir, não me comas à luz artificial

Se me queres ouvir, não me comas sob o novo
mobiliário urbano da vila, comparece contudo
defronte do banco de praça que o paisagista
rasgou oblíquo no mundo

Se me queres ouvir, não me comas nos festivais
onde uma versão temerária de mim e nenhum
pensamento circulará pelo auditório
minimal que o arquitecto municipal
ergueu apesar do mundo

Se me queres ouvir, não me comas na televisão
onde uma versão temerosa de mim e nenhum
olhar cegará os cinescópios datados
que o designer do cerco riscou apesar
do mundo

do mundo
volta atrás sem esperar o anúncio dos nossos
funerais e não me perguntes se vou publicar
e deixa os editores em paz que eles têm a corda
no pescoço por imperativos de mercado não
de literatura e então,

se me quiseres ouvir,
não me comas à luz artificial do novo
mobiliário urbano, chega-te ao banco
defronte do meu e observa as minhas
mãos a olhar para as tuas e os meus
joelhos a mostrar os teus e os meus
olhos a tomar os teus e o silêncio
a dizer o que ambos

queríamos ouvir
a mãe morreu
tem sido um prédio comprido de escalar entre
as costelas
lembras-te da milene? sim, até ficámos
de tomar café mal a vida toda cheia
ficasse vazia, porquê?
porque também morreu

foi quando?
foi ontem
foi ontem
foi ontem

ah, que alívio, então o funeral...
não foi, é amanhã
às três da tarde

quando as casas vazias

que bom, que bom,
vamos juntos
vamos juntos, sim
vai ser bom
vai, vai ser bom
e depois é o nosso
pois é, depois é o nosso 
ao menos
que não seja no mesmo dia

ahahahahahahahahahahahahah (treze sílabas métricas)

uma gargalhada subiu aos postes imaginados
pelo arquitecto paisagista e entrou
nos auditórios minimais
e nos velhos
cinescópios

os amigos continuarão a adiar-se
e a morrer sozinhos

(sem querer)

os escritores a dizer as mesmas coisas, mas felizmente
a escrever outras 

que ao menos não se comam uns aos outros
à luz artificial


PG-M 2015
foto de Jessical Ceballos, por Tyler Curtis: clique aqui para fonte da foto

2015-12-08

Na Galiza, em Dezembro

Deixo aqui a ligação para um entrevista a um órgão de comunicação galego. Gostei muito das perguntas do Ramiro Torres. É só clicar sobre a foto (printscreen do blogue "Palavra Comum").
Deixo também, a seguir, algumas fotografias da sessão de autógrafos da Culturgal no sábado, 5 de Dezembro de 2015, no Pazo da Cultura de Pontevedra, e dos fantásticos dias 23 e 24 de Novembro de 2015 em Santiago de Compostela (charla no dia 23, com a escritora galega Ledicia Costas) e aula na Escola de Idiomas na manhã de 24.
http://palavracomum.com/2015/12/07/entrevista-ao-escritor-portugues-pedro-guilherme-moreira/ 


com Ledicia Costas, 23-11-2015, Santiago de Compostela

Livraria Ciranda, Santiago de Compostela, 23-11-2015,
com Eugénia, da DG Cultura do Norte e Loaira, livreira

Aula na Escola de Idiomas de Santiago de Compostela, 24-11.2015

Cartaz da Culturgal 2015, Pontevedra, 5-12-2015

Com o grande Estraviz e Eliseu, na Culturgal 2015, Pontevedra
 
Sessão de autógrafos, Cuturgal 2015, Pontevedra






2015-11-25

Discurso Galego


Santiago de Compostela, Escola de Idiomas, 23-11-2015, 20h, Nortear, Universo Literário Comum

Quando ouvimos os discursos oficiais, metade do tempo é coloquialismo – ninguém diz nada de importante antes de se dirigir a toda a hierarquia presente. De certa forma, acredito na ordem como organização da capacidade de escutar, e quase ninguém tem capacidade de escutar. Não porque sou revolucionário, embora aposte em cavalos de tróia, mas porque me dirijo sempre aos presidentes e aos directores quando os vejo incomodados com a beleza.

Assim a regra mudou.  Por isso, Cristina Rubal, que vens em vez do Anxo, que é um nome belíssimo que em Portugal só se usa nos nomes de família e quase sempre no plural, não me dirijo a ti porque és subdirectora xeral das Bibliotecas da Galiza, mas porque celebro ter-te conhecido aqui e ver-te vibrar e emocionar, não apenas connosco, os protagonistas, mas com a audiência em frente, os anónimos, aqueles que hoje, provavelmente, nós não conheceremos ainda. Vladimir Nabokov, numa carta à sua mulher Vera, dizia que tinha a sensação que os anjos estavam todos no céu a fumar com ar de culpados, e que, quando o Arcanjo passava, deitavam os cigarros fora, à pressa, sem os apagar, e que isso, para Nabokov, é que eram as estrelas cadentes. Pois estou certo de que para ti também, Cristina.

Senhor Director Gonzalo, não precisava de me dirigir a ti no intróito do meu discurso, porque creio que já cumprimos todas as etapas da condição da amizade, mesmo antes de nos conhecermos. Nem sempre é fácil como foi contigo, por isso não te dirijo o discurso, mas amizade, respeito, mesmo esta paixão comum pela literatura.

E não me dirijo a ninguém de Portugal, porque Portugal está sempre comigo, dentro de casa. Talvez só me dirigisse a Portugal se ganhasse um óscar – é certo, e isso garanto-vos, que se me deixarem viver tempo suficiente, ainda ganho um óscar para Portugal, até para explicar aos americanos onde fica. Mas os galegos sabem onde fica Portugal.  Portugal é o seu corpo no mapa, o corpo de uma cabeça brilhante chamada Galiza.

E tenho pelo menos uma religião: a negação de mim como centro do mundo. Não  professo a fé de quando os escritores aparecem perante uma audiência apenas com a experiência e a sabedoria e não trabalham, não se tiram do centro, não fazem da audiência e dos pares ao seu lado o centro do mundo, o objecto do momento. Não fazem tudo para se apaixonarem e deixarem que se apaixonem por eles. Não oferecem o corpo, os abraços, a voz, os beijos, a saliva que separa as palavras umas das outras e até as queima, como queima as línguas dos outros. Creio nas nossas línguas assim, num beijo, em fogo, formando parte de uma unidade quando se juntam, e sendo indivíduos quando separadas, como os grandes amores, durmam na mesma habitação ou em habitações diferentes.

Grande parte deste texto estava escrito antes do terror de Paris, mas não pensem que, porque é moda ou anti-moda, eu vou deixar de disparar sobre vocês, eu vou fingir que cada reunião pública não é um acto de coragem e liberdade, principalmente de quem se senta na plateia. Porque, vejam bem, a alternativa é o conforto do espelho, é o curriculum do escritor ao espelho.  Em vez de falares de ti, escritor, de dizeres o teu nome, escritor, diz o nome da mulher em frente a ti, diz o nome do homem  em frente a ti.

Roberto Amarelle, não te protejas, não caias na trincheira, dá-te. A charla é sobre ti.

Alberto Crespo,  não te protejas, não caias na trincheira, dá-te. A charla é sobre ti.

Aida Cuiñas, não te protejas, não caias na trincheira, dá-te. A charla é sobre ti.

O Roberto não gosta de cinema, mas como poderia o Roberto gostar de cinema, se está ocupado a viver as aventura do Capitão Alatriste, do Arturo Perez Reverte?

O Alberto já gosta de cinema, do filme Abre os olhos, de jogar futebol com o Ronaldo na quinta privada que têm na praia e de comer comida mexicana e passar o tempo entre costuras.

A Aida, que tem um nome de grandes obras literárias e é a protagonista do meu primeiro romance, A Manhã do Mundo, onde estão todos os 11 de Setembros e todos os Charlies e Atocha e Londres e Paris, é mista no comer, Pilates e caminhada no mover, Inodchina no ver, mais de cem anos de solidão no ler e uma casa com jardim.

Carmen Regueiro Dopazo, não te protejas, não caias na trincheira.

Ana Valladares Fernández, dá-te.

Monica, de quem não sei o apelido e por isso vale para todas as Mónicas, Mónica, a charla é sobre ti.

A Monica, de quem não sei o apelido, é vegetariana e gosta da actividade que mais faz crescer, que é dormir, gosta de ver drama político e de ler poesia, filosofia, ciência, as vésperas de leviathan, e não sei se aqui véspera se diz no sentido de dia anterior ou de final de tarde. Para mim, Monica, é final de tarde na tua casa de campo.

A Carmen sobe montes e vales por caminhos ínvios numa bicicleta estática e não gosta de comédias absurdas e formará a sua própria novela numa casa longe de tudo onde não haja contaminação.

A Ana Valladares tem algo que me fez parar logo, é um detalhe, faz parte dela e de mim ao mesmo tempo. Valladares é o nome dela e o nome da vila onde eu moro, da praia onde eu escrevo e onde me banho e tomo sol. Não pode ser coincidência, Ana. Nunca é. Ficas na obrigação de visitar essa vila portuguesa, porque eu já te visitei a ti. Até porque, como tu, me deixo encantar pela comida-lixo de vez em quando e vou comer ao mundo todo, a Itália, à China e ao La Pepita, em Vigo e hoje vou chegar a comer em Santiago. E é fascinante que o teu desporto favorito seja andar aos cogumelos e às castanhas, passear, perderes-te por ruas ou povos desconhecidos. E é tão bonito parar o carro e meter no maleteiro uma mesinha antiga antes de ver um filme com mensagem social. E gostas dos livros todos, por isso, sim, vais acabar por chegar aos meus, a mim e ao Valadares do Porto, Portugal.  Só tenho pena de não ter estufa nem chaminé em casa, Ana Valladares.

Alexandre Vizinho Aguirre, a charla é sobre ti.

João António Calo Pouso , não caias na trincheira.

Cristina Sobrado, não te protejas, dá-te.

Alexandre, só com o tema da trilogia do Padrinho, do Coppola, e a tua vontade de visitar a cidade onde eu nasci e vivo, o Porto, não nos calaríamos durante dias, mas há uma condição: espero que concordes que o Padrinho só tem dois filmes bons, e que o III é mau. Curiosamente, o que achávamos na altura ser um acesso de nepotismo do pai Francis, a apresentação da filha debutante, Sofia, ao mundo, veio a revelar-se premonitório, porque hoje a filha Sofia é mais brilhante a filmar do que o pai Francis.

João António, será que percebi bem? A qualidade do companheiro viajante deve ser brincalhão? Se percebi, talvez isso baste. O humor é uma virtude superior.

Cristina, tu gostas de comer na rua, de visitar a cidade, de te rires com a Costela de Adão, e ficar o resto da vida a ler Crime e Castigo, do Dostoievsky. Pois, é isto: está tudo dito. Basta querer fazer o mesmo.

Maria Tilve, não te protejas, não caias na trincheira, dá-te. A charla é sobre ti.

Maria, tu que tomas um pequeno-almoço tão forte que a comida não te vê durante o resto do dia, tu que amas Mia Couto com todas as tuas forças, como eu, fica sabendo que ele é, há mais de dez anos, o meu candidato para o próximo Prémio Nobel da Literatura em português, neste caso para Moçambique, e que, apesar de trocar correspondência com ele, como par, tenho veneração tão grande que o pudor me deixa calado quando nos encontramos pessoalmente, logo eu, Maria, que nunca me calo! Pois sei que amas Portugal e que, podendo, vivias o resto da vida, e até morrias nos Açores. Só não sei em que ilha, tens de me dizer antes de eu me ir embora, em qual das nove ilhas irias viver e morrer, Maria Tilve. E, antes de te despedires da Galiza e navegares para os Açores, passa pelo Porto e diz-me como descobriste o sal das palavras novas do Mia, palavras que são novas em todas as línguas.

Uma canção recente da genial cantora mexicana Natalia LaFourcade começa assim. “Esta historia terminó, no existe”. Pois aqui é exactamente ao contrário. Tudo acaba de começar.

Os nomes, anónimos há minutos, tornam-se subitamente gigantes e o centro deste mundo. Este é o movimento. O escritor, o artista, a figura pública, deve tirar-se do centro. Essa é a diferença entre escritores vivos e escritores mortos. Pois muitos dos escritores mortos estão bem vivos em nós, mas os que estão mesmo vivos não se podem comportar como se estivessem mortos, desaparecer do mundo, exaltar o silêncio de forma gratuita.

O universo literário comum é o universo. E tu tens de escutar o universo. Só há problema quando não escutas, quando ignoras. Se escutas, lês. Se olhas em volta, se procuras, se não sais de tua casa e vens à casa do teu irmão galego, nunca descobrirás que há literatura em lado nenhum. E ignoras o teu vizinho. E então tens medo de morrer sozinho e ficas furioso por ninguém te ouvir a ti. Isso é o suficiente para me querer, não escutar, não ler, mas matar. Nunca me matarás se eu te ouvir, se eu te ler, se eu me der a ler.

Como não podemos ter medo de terroristas e armas, também não podemos ter medo de gostar, de chegar perto, de deixar chegar perto. A rapariga sul-africana que se fingiu de morta no Bataclan, e cujo testemunho no facebook foi lido por milhões, disse que, quando estava deitada entre os corpos ensanguentados a despedir-se da vida, em nenhum momento pensou nos assassinos, mas nas pessoas que amava e que a amavam a ela, e garantiu aos familiares dos mortos que eles também estavam a pensar nos que amavam e os amavam a eles, não a perder tempo com o medo.

Como postou a Loaira, da Livraria Ciranda, no seu facebook, de um jovem escritor brasileiro, Gonzaga Neto, “Em tempos de gente seca, chova amor”, que em galego tem a mais bela palavra, que não existe no português e eu aprendi com a Ledicia:  agarimo.

Eu sinto falta de que me toquem e de que se chore mais vezes. Não um choro vazio e egoísta do “Olha para mim”, mas alguma coisa física e violenta por não conseguirmos aguentar a beleza cá dentro. Acontece-me muitas vezes com os poucos amigos íntimos: no Porto até temos o hábito de nos insultarmos por amor, porque não aguentamos a beleza dentro do peito. Esse é que devia ser o nosso universo comum: se nos tocarmos, fisicamente ou intelectualmente, entendemos tudo o que dizemos em qualquer língua: vão perceber porquê quando terminar esta leitura.

não creio na frialdade, pero que a hai, hai

Há uma palavra em galego que é muito mais bonita e completa do que em português: ilusion.

Ilusão, em português, não é virtude. Mas é virtude em galego. Vou daqui com uma decisão: vou começar a usar a ilusão em português como uma virtude.

O universo literário comum do norte de Portugal e da Galiza não é uma questão política ou linguística. É uma questão de carne, de escuta, de atenção. De agarimo.

Tenho um problema grave com a minha interlocutora, Ledicia. Quando comecei a ouvir o que ela escreve, repito, a ouvir na minha cabeça o tom das frase e das palavras da Ledicia, postas como ela as põe na pauta, reconheci-me. É o lado bom do espelho, quando olhas da parte de trás e reconheces um igual. A Ledicia é igual a mim, mas a Ledicia é muito melhor do que eu. Ainda botei os olhos ao Recinto Gris, ao Animal chamado néboa, à Escarlatina, e não encontrei nenhum livro infantil, nenhum livro juvenil ou adulto. Só literatura. E incomodei-me com a beleza, como te prometi, Anxo, que tu também te incomodarias.

Ledicia, não te vou perguntar o que pensas sobre nada, mas o que sentes sobre tudo.

Ou então, vou perguntar outras coisas para fingir que não somos todos frágeis, por exemplo,  o que era o caderno rubio que a professora te quitou? E porque é que a Marta ainda o usava? E porque é que a Marta, que era a mais guapa da classe, tem de escrever grande, Ledicia? Tens algo contra as formigas em forma de palavras, Leidicia, contra segredos escritos baixinho? Fizeste chorar a Marta como Mario, Ledicia. Não é grave, é dramático, como ela disse.  Depois chamaste-lhe pécora, que é uma palavra muito bonita em português, porque não se usa muito e soa aos cobertos dos casamentos, não a prostitutas. Pécora é uma palavra bonita em português. Agora podes escrevê-lo trezentas e trinta e três vezes, Ledicia. Nenhum português pensa em loira quando ouve rubia, mas o galego tem a palavra ruiva e usa rubia para loiros, mas a professora explicou que, afinal, rubia é ruiva e loura é loura. Faime caso, Ledicia. Faime caso, porque, se não me fazes caso também te pego um chiclete ao cabelo e depois alguém vai ter de te cortar uma madeixa e nunca mais serás a mesma. E a verdade é que, se me fazes caso, podes fazê-lo em qualquer língua. Não me importa. Saber escutar é invisível como o agarimo, a eternidade, a pena, o ar, o norte. O nosso norte. E cito-te, Ledicia:

Abrir comiñas: “Há muitas coisas importantes que são invisibles. Air, pena, amor, norte. O do norte é uma coisa rara. Porque, ainda que te dirijas para ele, nunca chegas. Sempre há outro norte mais ao norte que esse onde estás.  E assim podes passar a vida, indo para norte. Eternamente. “ Fechar comiñas, porque Ledicia não se escreve entre comiñas. Ledicia está aqui. Que sorte que Ledicia está aqui.

Quando eu era pequeno e passava a velha ponte de Valença para Tui para comprar caramelos, para mim a Galiza era só uma rua pequena junto ao rio Minho com lojas. Tendas. Tenda sim, tenda sim. Estávamos horas a mostrar os documentos à polícia da fronteira para passar uma ponte de ferro e caminhar quinhentos metros para lá e para cá a comprar caramelos. Não estava mal que a Galiza fosse só uma rua. Ainda é isso para mim. É infinita, mas também é só uma rua onde eu caminho a escutar coisa invisíveis. É perto. É minha.

E, apesar de todas as nossas semelhanças e raízes comuns, o que me encanta, na literatura e na vida, é a diferença. E a comunicação como ponte sobre os desfiladeiros. Gosto dos estrangeirismos, gosto de escrever com palavras mais galegas do que portuguesas, ou portuguesas com sotaque brasileiro ou galego, gosto da liberdade de falar como me apetecer.

Gostava de fazer asneiras e dizer palavrões em galego – é a primeira coisa que se deve aprender, a fazer asneiras e a dizer palavrões.

Sou poliglota, mas comunico numa só língua, que as contém a todas, como os beijos.

E porque eu gosto de todas as línguas, também sei que, se eu fosse refugiado e estivesse cansado e pedisse a uma mulher síria para adormecer o meu bebé, ela lhe cantaria uma balada em árabe e ele entenderia.

Entenderia a paz da sua voz e das suas palavras.

Provavelmente é isso. É essa a solução para um mundo melhor. Aprendermos estratégias com  a música. A música que nos fala sem palavras ou com palavras que não entendemos e, ainda assim, comunica.

Adormecermos com um canto de embalar nos braços de outra mãe.

Pois a minha outra mãe é, faz muito tempo, a Galiza.

Obrigado.

 PG-M 2015
foto da Escola Oficial de Idiomas de Santigago de Compostela

Agarimo

Era isto, pois :)




2015-11-15

Pletora (noite pátria)


Ó silêncio da manhã, névoa eterna, noite
pátria, este biombo que as lágrimas tomam
será o meu escudo e o medo a montada
das veredas ínvias aos campos abertos
onde juram sangue as almas penadas
vazias de força tapadas de fome
de si e de luz e de esperança e comidas
de tempo e da honra e da voz e de nós
como gente, o golpe é de braço em abraço
sem conta ou limite que não do amor,
Ó silêncio da manhã, névoa eterna, noite
pátria, mesmo que de um colo frágil parta
a branda luminância desta espada,
mesmo que da humanidade o torpor,
cindirei a fera em duas
uma parte de esquecer
outra parte de lembrar
e o sangue

o sangue
exangue

PG-M 2012

2015-11-05

Rentrée

 
Nota: o texto é publicado fora de data. Portanto, estamos em Setembro (de qualquer ano)
Gratidão. Temos centenas de queixas, as coisas perfeitas andam longe, vivemos num país com tanta beleza quanto mediocridade, há muitas certezas no ar, poucas dúvidas fundadoras no chão, os amigos nomeiam imperceptivelmente os amigos, há lapsos no mérito, quer-se fazer melhor mas há um cansaço a travar e um ordenado a proteger, no fundo tu serenas no meio de imprecisões e de homens sem qualidades. Há, no entanto, quem esteja curioso com a tua felicidade improvável e te queira receber e escutar. Eu, atrevendo-me a falar também em nome dos que, como eu, têm o privilégio de correr o país por capelas que celebram o que criam, e depois de uns sete meses inesperadamente loucos e intensos, tenho apenas vontade da solidão e da gratidão. Preciso de fazer este balanço, antes de seguir com a vida, já depois do almoço. Creio que este ano que passou - de algum modo ainda faz sentido, para mim, medi-los de Setembro a Julho, ficando Agosto como o abismo hegeliano - foi dos mais importantes e felizes da minha existência, e, lá está, falo por alguns outros criadores que vejo no mesmo ponto, no mesmo deslumbramento. Sem alarido, resgatei a minha paz na função criadora. Estou cansado e sem memória do detalhe, mas feliz. Recebo amor todos os dias do exterior sem o procurar e vejo a solidão que me alimenta respeitada. Finalmente conheço gente sexualmente lúcida. Recolho à caverna profunda de onde vim. Apetece-me muito, muito, desparecer do lado mais público, mas acho isso um atrevimento cívico e uma desnecessidade, até porque é certo que, quem não se agita ou salta perante a opinião pública, quem não investe na personagem literária que é, é rapidamente esquecido. Desejo isso. Ao mesmo tempo, peço a vossa paciência a cada despertar de hibernação. Eu ainda sou uma personagem literária, não egocêntrica, mas altamente limitada pela dimensão plana que tenho na construção que faço de mim aqui. Quase nada me importa além da literatura, mesmo que possa parecer que sim, e isso torna-se uma constatação amarga para alguns amigos. Agora estou investido num projecto a quase dez anos, precisamente porque desejo afastamento de tudo o que é dinâmica editorial. Tenho alguns filhos (livros) já criados que um dia sairão de casa. Não sei quando nem pela mão de quem. Não me perguntem, eu prometo que digo logo que saiba. Gratidão. Ou seja, apesar deste ano determinante em que a maturidade ensinou caminhos por mágoas, cada vez são mais os caminhos e menos as mágoas. Somos elementos frágeis. Por sermos isso, não tem sentido aspirar à perfeição pessoal - mas a obsessão da perfeição criativa é incontornável. E essa é a conclusão deste balanço de meio de vida e de meio de criação: quero criar em silêncio e darei o que me apetecer. Mas darei a todos e, principalmente, tenho vontade de amar todos, mesmo os maus ou os medíocres, porque tenho esta convicção profunda de que o amor é uma peste que cobrirá tudo. E peço consintam que não seja sempre meigo, que ame criticamente e com a violência do que aspira sempre ao degrau de cima. Não do poder, mas da composição do tempo. Obrigado.

 PG-M 2015

2015-10-16

Os anjos da Asprela em verso

Os anjos que eu conheço fumam,
almoçam em tascas, bebem vinho, ouvem música alto e
cheiram, têm sexo, às vezes connosco, e até são maus
em partes desimportantes do dia
Mas quando toca a estarem presentes
porque se te vai a vida - estão
Nos escassos momentos em que vivem as próprias
existências, podem ser copy-paste,
mirrar para dentro de ecrãs e estar desatentos,
dizer e tipo, até fumar umas ganzas
e beber umas minis,
mas quando toca a estarem presentes
porque se te vai a vida - não só estão
como transcendem o que lhes pedes
É até comum que, quando se lhes pergunta se viram
uma ou outra coisa ou se sabem isto e aquilo,
possam ser ignorantes como nós, mas tenho para mim
que tal acontece porque nunca estão em si,
mas em ti e nos outros como tu, porque quando
se nos vai a vida não há tempo, ou, se há,
as horas tomam desoras e é preciso
quem ande lá por cima
 
É preciso quem voe

Hoje sabes muito bem. Sabes que são mais importantes
os que te seguram a mão e ouvem - e, verdade seja dita,
se os anjos da asprela fossem, além de bons, cultos,
- ou os que o são - e tu os conhecesses,

morrerias de enlevo,

e não do que eras para ter morrido, e eles,
com o seu sopro, cuidaram que se extinguisse,
como a chama das velas que agora espalhas pela casa
em nome deles. Sabes que eu não gosto
nada disso.

Já bastam anjos que fumam.

PG-M 2012

2015-10-03

poema de uma só linha sobre um dos aspectos do silêncio



hoje é dia de dar as palavras às vezes em que as perdi


veio daqui: "escrevo muito pouco olhando o passado ou a experiência. Escrevo muito projectando-me no que leio nos olhos ou na postura dos outros. E às vezes manipulo o meu próprio sentimento: hoje é dia dar as palavras às vezes em que as perdi"
(música de Arvo Pärt - Spiegel im spiegel;
 letra de mim)

 

 PG-M 2013

2015-09-10

A consciência aguda da beleza

 A consciência aguda da beleza e do silêncio, que podem ser sinónimos ou o seu contrário, como a consciência aguda do lugar universal, deixa-nos frequentemente calados, passivos, sendo a irrelevância estelar que num olhar, num sorriso cúmplice que leva silêncio à beleza e um barulho íntimo, estético, ao silêncio, se manifesta um todo, que para o universo é nada e por isso nos calamos durante os abraços e até durante o choro mais profundo, seja ele felicidade ou o seu contrário. 


PG-M 2015 - ATP forever 
Foto de Ana Teresa Pereira em publico.pt aqui/ autoria: José Miguel Rodrigues

2015-08-11

Ekaterina vive e é principalmente Carolina (e Daniela e Rita)

Ana Carolina Cardoso em "Ekaterina sobre tudo". Finalmente, digo eu. É daqueles momentos que rebentam connosco por dentro. A minha peça "Ekaterina sobre tudo" foi objecto de um exercício teatral de pouco mais de cinco minutos pelo Grupo de Teatro de Amadores de Gondomar. A menina que condensou o texto, que deve ter perto de uma hora, e por isso fez um trabalho notável, chama-se Ana Carolina Cardoso e é brilhante fora e dentro do palco (aqui é a protagonista). Não desistam nas partes em que se ouve pior (principalmente no primeiro minuto), porque o resto dos minutos valem muito. É uma comoção absoluta para mim, como autor, espero um dia que muitos de vocês estejam na plateia. Hoje sei que é preciso uma coragem tremenda para levar este texto às costas, mesmo por cinco minutos. A ovação final di-lo. Um dia alguém o levará pelo tempo todo. Talvez a Carolina, talvez a Catarina (olha, Catarina! olha Paula, olha Maria Miguel, olha Cristina, olha Margarida, olha Joana, olhem os que puderem) - Obrigado também à Carla Daniela Mota e à Rita Fonseca. Ficha técnica anexa ao próprio vídeo, que pode ser visto aqui:
https://www.facebook.com/peronog/videos/10205478009487778/

2015-07-31

(Volume 7) Bernardi e Francesca na Gioiosa Ionica (e talvez voleibol) - Novelle Italiane

VII    (volume anterior aqui)
Bernardi ficou popular em Cinquefrondi depois do episódio de Toto e Gardini.
Atraiu atenções que até ali se limitavam a uma simpatia externa pelo estranho simpático.
Talvez vos tenha mentido quando atribuí a mesmice de expressão de Bernardi, nos últimos dois dias, (falava apenas por lágrimas) à sintese do poema. Não era bem isso. No fim do primeiro jogo de Portugal, houve, para Bernardi, uma desaceleração do tempo: os olhos diáfanos de Francesca. Ela passou em câmara lenta no corredor da imprensa e dos fotógrafos, aos pés do Palazetto, olhou fugazmente para a bancada e Bernardi atirou-lhe
- Os teus olhos têm a mesma cor do sobremar calabrês.
- Cosa? No entiendo! - respondera Francesca, de fugida.
É comum que os italianos ouçam castelhano em todos os povos ibéricos e, se souberem algumas palavras, as usem com os portugueses, a quem agradecem regraciando, excepto Gardini, que sabia o que era um obrigado, e portanto também sabia agradecer em português. Não é difícil, realmente, aprender a palavra nacional de agradecimento dos três ou quatro povos que nos fazem vizinhança, mas também não é comum ouvir um italiano a dizer  "obrigado".
Convém também precisar a invenção de Bernardi: "sobremar" é uma palavra que não existia antes de Bernardi chegar all'estremo sud e olhar para o mar calabrês naquela primeira manhã. Explicou-me que a inventara para designar o mar perfeito, azul e homogéneo que se vê de um ponto alto, bem acima do nível do mar, mas "sobre o mar". Diz que designará um mar superior e alto. Pode chamar-se sobremar ao mar que se vê das montanhas madeirenses ou até das falésias alentejanas ou até da serra d'arrábida.
- Os teus olhos têm a mesma cor do sobremar calabrês, naqueles primeiros metros em que os corpos e os objectos não se podem esconder e tudo é transparente.
Francesca sorriu e seguiu.
É morena com os cabelos em flocos e uns óculos grandes e quadrados aparentemente sem lentes e com a exclusiva função de lhe emoldurar os olhos, caminha na cadência belucci dos melhores tempos e nem com a tshirt oficial do torneio perde o enlevo - aliás, a palavra Portogallo na tshirt é, para Bernardi, uma declaração de amor. Francesca seria o sortilégio de Bernardi. Nem o voo de um pica-pau negro sobre as montanhas rochosas de Aspromonte lhe mitigará o apego.
No manhã do último jogo de Portugal, já depois do episódio Gardini, Francesca apareceu-nos como uma mistura do coelho e do gato da alice do carroll, deu as cartas, às de copas, perguntou ao Bernardi se conhecia Gioiosa Ionica.
- Só pelo Toto, que disse que o mar Jónico era o melhor de todos os mares, mas o Toto exagera...
- No. È perfetto. Andiamo?
Uma águia azul planou, como fariam os atletas de Portugal, o vento quente do levante varreu os pêlos dos braços e as ervas altas, os lábios de Francesca estavam pintados de verde escuro e cheiravam a maçã, Bernardi reparou que as pestanas dela eram compridas e arciformes e roçavam nas lentes dos óculos, afinal os óculos tinham lentes, as mãos eram finas e compridas e melífluas e uma delas encaixou espontaneamente na sua. Bernardi olhou-me, entre o assustado e o feliz, e eu acenei que sim com os lábios cingidos e kiss-ready, expressão de aprovação de amigo. 
E Bernardi voltou a tomar conta do texto:
Fizemos todo o caminho para o mar jónico entre montanhas e com Francesca a olhar-me nos olhos pelo retrovisor central. Cheirava a lírios-brancos. Chegámos à Gioiosa Ionica, Francesca indicou-me uma praia vazia. Parámos, saímos, ela perguntou se eu tinha uma toalha, disse que sim, que a levasse. A praia era toda seixos cinzentos, Francesca deslizou até à primeira linha de mar, tirou o vestido canário pela cabeça, ficou em soutien e cuecas cor de pele, uma tez muito escura, quase árabe.
- È questo il tuo sobremare?
Sorri. Estúpidos somos nós, não elas. Nadou a trinta graus, eu fiquei estático sobre os seixos, uma sensação de impossibilidade encrespou-me, Francesca saiu lentamente verificando o próprio corpo, escorreu o cabelo e parou a um metro de mim:
- Sono fidanzata. Si può guardare, sentire l'odore, abbracciare, ma non baciare.
Não fiquei desiludido - prepara-me o arrepio da impossibilidade. Fiquei até grato: Francesca veio ao mar jónico dar-me, gentilmente, uma memória. Para a tatuar, perguntei:
- E dançar, pode-se?
Ballare se può. Pegámos nos respectivos telemóveis ao mesmo tempo, mas eu disse:
- Não, Neffa não, por favor não.
Francesca riu, depois dobrou o riso, despois desdobrou o riso.
Esta sim. Não uma clássica a compor um quadro perfeito e anódino. Se não se pode beijar
Let’s Marvin Gaye and get it on
You got the healing that I want
Just like they say it in the song
Until the dawn, let’s Marvin Gaye and get it on
(Marvin Gaye, Charlie Puth)
Há um toque de cha-cha-cha, o vento de levante, o cheiro a lírios-brancos e maçã, os lábios verde escuro, a fonte quente de Francesca, a mão melíflua a cingir-me, as ancas a marcar o ritmo e os pés a varrer os seixos.
Não a beijarei. Não já. Os pica-paus pretos e as águias azuis continuarão nas montanhas de Aspromonte e eu não a beijarei. Levarei, contudo, esta tatuagem, este final de manhã, princípio de tarde, para a nossa escala em Veneza. Descobrirei a ponte mais discreta e bonita do mundo para descrever uma paixão impossível. Não a Calatrava, não a Rialto, nenhuma do Canalasso, mas a ponte Giustinian, sobre a qual construirei mitos maiores do que os destes doze atletas exemplares e da minha Francesca.
E um dia, despois de nos rirmos muito das memórias da Calábria, de comermos tramezzini em rolo e bebermos san benedetto limone, beijá-la-ei no centro do arco da ponte.
E escreverei em grafitti contra as leis
Se può baciare. Per sempre.
Amanhã regressarei por ti all'estremo sud, para rematar todas as lendas.
(continua no volume 8 e último)
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PG-M 2015

(Volume 6) Sostiene Bernardi e o Voleibol em Itália - Novelle Italiane


VI   (volume anterior aqui)

Bernardi ficou consumido com o poema. A poesia pode ter esse efeito: sintetizar todos os sentidos do universo com a palma da mão que se abre para nela pousar o mundo ou outra mão, que é o mesmo. Foi por isso que Bernardi me passou a mim, Dez-cartas, a responsabilidade de escrever a crónica final em jeito de comentário desportivo. Os nossos meninos começaram e continuaram a perder, mas, a cada "Portuguesa", sentia-se incólume a alma lusitana que planava sobre as montanhas de Aspromonte. A forma mais dura e eficaz de aprender em qualquer nível de desporto é perdendo, com a vantagem de baixar a guarda dos adversários. Na verdade, tinham ganho em Dezembro à Espanha, que viria a ser segunda classificada numa final com negra a 16-14. A Itália tinha, realmente, um nível superior a todas as outras selecções, mas às vezes também se ganha com o coração. E ganham-se corações. Começar a perder e acabar a ganhar fez da equipa portuguesa a mais simpática de todas, com claque italiana nos últimos jogos. Giusy Bonini foi a intérprete e tradutora da selecção portuguesa, mas, além disso, trouxe para o Palazetto sport de Cinquefrondi uma cintilância que fez dela e de Gianluca, o rapaz das finanças do bar, as luminárias nativas das quinas que eu e Bernardi íamos polindo nas águas quentes do Mediterrâneo todos os dias. Vou contar-vos uma coisa extraordinária. No final do primeiro jogo, não sabíamos bem que direcção seguir para sair de Cinquefrondi. Então abordámos um casal maduro muito bonito, ele mais de dois metros, ela quase um e noventa, aquele tipo de loira italiana sobre a qual desceu toda a classe: "Prego, per Nicotera?", e ela, simpática, "oh, no lo so, ci stiamo arrivando da Bologna", e logo eu, "e noi da portogallo!"; ficou um sorriso também no marido gigante, mas o Bernardi não avançou. Quando olhei para ele estava com a boca aberta, em suspenso. Dez-cartas, disse-me, eu esperava tudo, garanto-te, mesmo tudo, menos encontrar aqui, em carne e osso, um ídolo da minha selecção de sempre, um dos seis, nunca. Quem, aquele gigante? Aquele gigante era o Gardini, o central que alternava com o Lucchetta. Não me digas. Digo. Queres ir pedir-lhe um...? Ah, não, não. E a semana continuou. Toto, o velho tiffosi teórico do clube local, o Jolly Cinquefrondi, falou das tácticas e das direcções ideais que il portogallo devia dar ao seu jogo, do que estava a falhar e do que o allenatore Guerra devia fazer, e Bernardi só lhe dizia: o que está a falhar é a cabeça, e é isso que neles vai crescer, mas dentro do crânio e de forma imaterial, que aqui não curamos dos grandes avanços da neurologia. Toto ouvia, mas não acreditava, que aqueles meninos eram muito mais do que estava à vista e então chegava a compará-los à célebre geração dos fenómenos italianos, que tinham vindo do nada, e estava sempre a apontar para Gardini, para Gardini, para Gardini, e a falar das jogadas do mundial de 1990, o que para Bernardi era música. Toto não ficou muito espantado quando Bernardi lhe explicou que lhe chamavam Bernardi precisamente por causa disso, pela sua obsessão pela mesmíssima equipa, que tinha como uma espécie de ídolo colectivo, mas essa ausência de espanto é muito típica, não dos calabreses, mas de todos os italianos, que foram uma eternidade, e ainda sentem que são o centro do mundo. Foi esse centro do mundo intumescido, ensoberbecido, do italiano Toto, que quase deu a primeira e única desinteligência da semana. Depois do primeiro set do Portugal - Itália, Toto passa junto ao court e faz gestos para a bancada, na direcção de Bernardi, que se tornara seu companheiro de conversa e intervalos. Estendeu as duas mãos abertas e depois fez um dois com os dedos, "dodici punti", disse, voltou a estender as duas mãos abertas, depois mais uma e outro dois com os dedos, "diciassiette minuti", e seguiu caminho na direcção do bar de Gianluca. Bernardi desceu calmamente da banca, o peito ebulia, chegou-se ao mesmo bar, cheio de italianos, e disse, em italiano escorreito: "Non ho bisogno che mi ricordi i punti o i minuti". E, imediatamente, funcionou a generosidade italiana. Perceberam que não estavam num refrega regional, mas numa disputa internacional que era de crescimento para todos: eram crianças a virar homens, senhores. "Hai ragione, Bernardi, hai ragione", disseram Gianluca e Nicola. Toto tomou as mãos de Bernardi, olhou-o nos olhos e ainda disse "Scusa" e pagou-lhe tudo o que ele precisou do bar naquela noite. Repetiu esse "Scusa, Bernardi" mais umas vinte vezes. Bernardi, olímpico, ainda declarou, para todos ouvirem: "per me, questi ragazzi sono tutti della stessa squadra". Até serem seniores, precisou. Mas mesmo depois, porque é natural que muitos joguem no estrangeiro, na mesma equipa. Gardini, sempre a uma distância higiénica, como convém a qualquer ídolo, tinha vindo ver o filho jogar numa jovem selecção italiana onde também evoluía o filho de outro ídolo da selecção de 1990: Cantagalli. Gardini ouviu o protesto límpido do português, ele e Aldo Bonini, eminência local. Aldo estendeu a mão a Bernardi e disse: "Grazie per la civilitá". Gardini, gigante, cingiu Bernardi pelo ombro e tomou-lhe um cachecol dos "Portugal Young Braves". "Posso?", perguntou Gardini. Bernardi, de todas as cores, deixou que Gardini levantasse o cachecol e o fizesse pousar sobre uns ombros imensos. Disse "obrigado", mesmo assim, "obrigado" em português bem explicado, mudou o braço do ombro de Bernardi para o ombro da mulher, a loira que distribuía classe, e afastou-se na noite de Cinquefrondi. Bernardi, que depois do poema só expressava as coisas por lágrimas, expressou-as uma vez mais. Gardini, o seu ídolo, tinha os ombros universais forrados do futuro dos meninos: "Portugal Young Braves". No dia seguinte, sem ninguém o esperar, Portugal U17 reconheceu-se finalmente ao espelho na manhã calabresa, foi imperial e venceu a Holanda por 3-0. Não que perder fosse mau, mas ganhar é outro tipo de identidade e talvez a poesia e a literatura não cheguem. Gardini sim, chegou e sobrou.

(continua no Volume 7)

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Dez-cartas 2015

(Volume 5) Sostiene Bernardi e o Voleibol em Itália - Novelle italiane

V    (volume anterior aqui)

Nota prévia: Dez-cartas, tens um papel para eu alinhar os versos? Começou a tocar "A Portuguesa", ali, all'estremo sud, tão longe de casa, e eu não contive as lágrimas que me queimaram o poema; os nossos heróis de mão sobre o coração e o poema deles a arder assim:
afonso está parado no ar com os braços desdobrados
e as mãos ilegíveis
ilude o palácio na curta para o central
david salta na vertical
a bola voa de costas para a zona dois
guilherme levanta voo da um
roda a roleta e bate
à frente dos três
capum
diagonal limpa a cair
na um do opositor
que devolve
kiko desenha uma prancha
a bola na pinta álvaro
empurra para o ponta
andré sobe e varre
a linha
marco de chaimite
dispara os directos
o terceiro fica
em jogo, diogo a.
faz de muro com
paulinho

a bola ressalta
a bola sobe

diogo o. bate seco
na longa oblíqua
max joga o pensamento no
bloco sobra
o triângulo curto
com sinfrónio
capum
zona um

foram vistos em bando
nas montanhas
de aspromonte
são aves de alma austral
planando por portugal

Bernardi 2015,
nas bancadas do Palazetto Sport de Cinquefrondi

PS: entreguei o papel ao Dez-cartas, que se iluminou de patriotismo e chorou

(continua no volume 6)

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2015-07-30

(Volume 4) Sostiene Bernardi e o Voleibol em Itália - Novelle Italiane


IV     (volume anterior aqui)


O quarto era fresco, mas a cama era de casal, o que não seria um problema, não fosse o cochilo algo edipiano do meu amigo filósofo. À décima vez em que ele assumiu a posição fetal trancando a minha perna esquerda entre as dele, resolvi levantar-me. Seriam umas seis da manhã em Itália, portanto cinco no meu relógio interno. Subi e puxei uma cadeira para a janela sobre o Mediterrâneo. Sentei-me com o braço estendido no parapeito. Se eu fosse escritor, teria aqui um problema de cifra. Creio que, para um escritor, todas as emoções intensas serão cifras, aparecem-nos como ovnis no firmamento, a projectar um feixe redondo de luz sobre o bloco do nosso peito e a tentar abduzir os órgãos onde a tradição dá residência aos sentimentos. Felizmente não sou escritor, posso limitar-me a sentir e, se preciso fosse, em vez de escrever chorava o que naquele cenário transcendesse as minhas forças e o corpo em si. As lágrimas viriam quentes, como as águas daquele mar, azuis como o seu reflexo. O tempo passa depressa quando se observa a perfeição: creio que somos narcotizados e cada minuto vira fatias mais grossas da hora. O Dez-cartas apareceu esgrouvinhado pelas oito, perguntou se era verdade, se estávamos mesmo ali, se houvéramos atravessado o Lácio a remoer, se tínhamos atravessado as montanhas mais míticas a olhar para o relógio, se trincáramos sandes de presunto e ricotta em estações de serviço a queixarmo-nos dos lavori in corso. Era isso mesmo. Abracei-o por me dar mais sentido e proporção do que qualquer escritor, mas expliquei-lhe - uma necessidade dos heterossexuais com teias de aranha na cabeça, como eu - que não era gay nem pensava tornar-me um, muito menos em Itália, pedi-lhe que não ficasse magoado comigo por, na próxima noite, eu patrocinar a empreitada de uma muralha de almofadas na linha central da nossa cama de casal. Então começámos a subida para a prima collazione do Giovanni. Não há descrição possível para aquela subida para  o pequeno almoço. Nos dias seguintes o Dez-cartas suplicar-me-á para levar carro, mas eu vou recusar por duas ordens de razão: é perigoso conduzir o carro alugado naquelas quelhas e não temos franquia zero, a primeira; viver a aldeia é vivê-la como a vivem os locais, e os locais não pegam no carro por tudo e por nada, a segunda. Por isso, caluda, o Giovanni só veio de Panda ontem à noite porque tinha um espectáculo a decorrer no seu bar. Pois a subida só se pode fazer com o rabo para trás e o peito quase no chão: de facto, as velhas italianas não sobem assim por velhice, mas por sabedoria. Esqueçam lá o elevador da glória, ou então concedam-lhe ainda mais inclinação e multipliquem a extensão por quatro. Mas talvez seja injusto dizer que qualquer pequeno almoço sabe bem naquelas condições. Os croissants e os brioches são fresquíssimos e, pelo visto, uma tradição italiana que o pão, na prima collazione, não é. O Giovanni trouxe também, à margem, um iogurte gelado de café que nos deixou os olhos cerrados. Os bofes à chegada haviam sido substituídos por gemidos. O Giovanni não pesca uma palavra de inglês, o que, neste contexto, deixou a mesa ainda mais animada e gesticulante. Depois de atravessar a bonita Piazza Garibaldi, de onde este herói italiano lançou a ofensiva para a libertação de Itália da Áustria, tem-se uma maravilhosa vista sobre a marina, que é como em Itália se chama às povoações que servem o mar. O Giovanni aconselhou-nos a ir à praia Groticelle, perto do Capo Vaticano, que ele vendeu como uma das mais belas do mundo. Sem desmerecer, temos umas cinquenta, entre o Algarve e Lisboa, tão ou mais bonitas, mas o que não temos é água do mar a trinta graus. O Dez-cartas parecia um bebé excitado, sempre a chamar-me para a água, mas eu precisava de deixar assentar a existência. Mesmo depois das duas horas matinais de meditação, tinha acabado de conduzir trinta minutos entre Nicotera e Capo Vaticano: recordo, estou em Itália, na Calábria. Sei bem que temos de nos adaptar à condução em todos os países, e, mesmo dentro de Portugal, há alguma diferença entre Lisboa e Porto (pensamos, de parte a parte, que os outros é que são os loucos), mas nunca mais digo mal dos condutores portugueses depois desta meia-hora. Em abono da verdade, os calabreses não são tão agressivos como os nós, ou seja, fazem as asneiras e toleram as asneiras dos outros quase em silêncio, ao contrário de nós, que, ao mínimo comportamento desadequado ou desritmado, perseguimos e insultamos o condutor relapso. Os calabreses não. Passam contínuos de forma descarada, não dão pisca para nada, estacionam de repente na berma, abrem a porta e saem antes de nós, que circulamos imediatamente atrás, passarmos, só buzinam para se cumprimentarem, não para reclamar. A adaptação é no sentido da ocupação do espaço: se nos aproximamos de um cruzamento, não devemos ser cautelosos, ou eles entram mesmo - devemos, sim, acelerar para ocupar o nosso território de forma assertiva. É menos perigoso assim, sendo lavajão como eles. Esta personalidade do lascia-fare acabará por se incorporar em nós na forma de generosidade. Este jeito de se atirarem de cabeça, primeiro, e perguntar depois é, aliás, a autenticidade apaixonada que muitos de nós procuram na própria vida. Pois eu pensava nisto enquanto o outro se atirava de cabeça para a água cristalina e quente do Mediterrâneo. Dividimos um spaguetti pomodoro basílico com os pés na areia, fomos a casa tomar banho e trocar de roupa, estava tanto calor que viemos mais molhados do que chegámos, mas sem sal. Vestimo-nos como tiffosi portugueses e agora só faltava encontrar o pavilhão. Não foi fácil, porque os italianos dão indicações como se todos dominássemos perfeitamente os princípios básicos do vocabulário das indicações em italiano e porque só um em cinquenta fala inglês. Se não sabemos, por exemplo, que "pavilhão" se diz em italiano "palazetto sport", não vamos a lado nenhum. Pois o pavilhão de Cinquefrondi ficava depois de um improvável e estreito túnel que parecia levar ao próprio inferno. Mas não. Em breve estaríamos sentados no paraíso, ou seja, nas bancadas gotejando suor e derramando a honra pátria e a beber o spresso lungo e a comer a maravilhosa macedonia (salada de frutas) do bar do Gianluca e do Nicola. Nada será o mesmo depois de Cinquefrondi. Hoje os rapazes usam o equipamento alternativo, calção azul e camisola branca, os italianos nas bancadas dizem que parece a Itália. Preparo-me então para fazer um poema com a arte dos nossos voleibolistas. Dez-cartas está maravilhado. Olha como eles voam, Bernardi! Olha como eles voam. Quero contar-te a final daquele mundial dos meus ídolos italianos, Dez-cartas, mas primeiro vou fazer um poema sobre estes doze. Do campo começam a vir sorrisos. Ver a bandeira portuguesa no punho de portugueses a três mil quilómetros de distância já não é só o capricho de um parasita que usou os retroactivos de uma pensão social rafada para ajudar à criação de um mito precoce. Em breve se calarão os Sigarette do Neffa e começará a portuguesa do Alfredo Keil, que os nossos meninos não ouvirão apenas em sentido, como dizem as regras de etiqueta, mas sentindo activamente a honra, à americana, com as mãos direitas sobre os respectivos corações.

(continua no Volume 5)
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PG-M 2015

2015-07-29

(Volume 3) Sostiene Bernardi e o Voleibol em Itália - Novelle italiane



III    (volume anterior aqui)

O avião deu várias voltas a Roma. Disse-me o Dez-cartas, entretanto esperto, que o piloto aguardava autorização da torre de controlo para aterrar. Os atletas nacionais foram levantando a cabeça à medida que o movimento da nave se tornava menos coerente. A cada volta o avião assumia uma grande inclinação e os "olha o Coliseu", "olha o Vaticano" do Dez-cartas irritavam-me a mim e excitavam os miúdos, que olhavam de forma oblíqua para trás a ver se ele estava a brincar e depois procuravam nos terraços de Roma, pelas janelitas do avião, a solução. Os nervos fizeram-me recapitular a meia-final do mundial de voleibol de 90 entre o Brasil e a Itália e o Dez-cartas pareceu genuinamente interessado, até porque quis saber onde era a zona um, eu disse que era logo a do serviço e que as zonas, no court de voleibol, se contavam ao contrário da rotação, que por sua vez se fazia no sentido dos ponteiros do relógio. Portanto, a rotação, em voleibol, é a favor do tempo, mas conta-se contra ele. Então, deixa-me ver, o Lucchetta, para bater a bola ao centro da rede para uma zona entre a um e a dois...hum....deve ter sido muito bonito. E quando dizes segunda linha, queres dizer o quê? Há uma linha riscada a três metros da divisória dos campos que define o ataque e a defesa. Atacas à frente dela, defendes atrás dela. O ataque tem uma área que é metade da defesa. Quando atacas atrás da linha dos três metros, atacas de segunda linha. E o cubano Despaigne atacava assim? O Despaigne era solicitado em quase todos os pontos do campo. E era eficaz? Muito. Saltava atrás dos três metros, batia em voo na projecção do metro e meio, de cima para baixo, com muita violência, muitas vezes a quatro metros de altura. Os miúdos olhavam de lado. Os parolos falam de voleibol? Olha o Coliseu, olha o Vaticano, ai que estamos a descer, é como se o avião fosse pisando o degrau inferior, os flaps das asas cada vez mais abertos, travão a fundo, palmas, estamos no chão. Abraço o Dez-cartas comovido. Estavas com medo? Sim, isso e nem acredito que estou na Itália com que sonhei toda a minha vida. Começámos a odisseia aeroportuária para ir buscar o carro alugado. Os balcões romanos de aluguer pareciam a fila da sopa, com a agravante de que não se pode reclamar qualquer dignidade para a necessidade de um carro, muito menos compará-la com a fome, disse, e com toda a razão, o Dez-cartas. Mas isto é triste. E a ansiedade na cara das pessoas, certas de terem sido apanhadas numa espécie de armadilha? E as surpresas, e os sobre-custos? Chegou a minha vez e comecei a aprender. Perguntaram-me se aceitava um Panda automático. Nunca conduzi um carro automático. A minha interlocutora na alugadora disse que também não, que me tentaria arranjar um carro melhor, porque os Pandas manuais estavam todos ocupados - melhor, deixe-me ser sincera, disse ela, não mandamos carros menos seguros para o sul de Itália -, mas que, além disso, havia um problema. Nunca tinha usado o cartão de crédito que o banco teimara em dar-me. Mas a Nádia da agência de viagens pediu-me tantas vezes um cartão de crédito que eu cedi o meu e dei-lho. E assim reservou ela tudo, avião, carro, dormida. Os valores só seriam descontados no final, mas disseram-me no balcão da sopa que o meu cartão não estava autorizado. O Dez-cartas tinha um, mas não conduzia, não pode ser. Ofereceram-me o telefone para ligar à Nádia, mas a Nádia disse que não podia fazer nada, que provavelmente tinha um plafond. Mas se eu ainda não gastei tostão e eles todos aceitaram as reservas e tenho para aí dez mil euros à ordem? Tentei que me aceitassem a garantia em dinheiro, mas nada. São regras. O Dez-cartas via-me nervoso e pedia, ao longe, que me acalmasse. Estava de guarda às malas. À volta dele a diáspora. Pelas minhas contas, eram pelo menos sete horas de viagem para o sul de Itália e os meninos desfilavam nas ruas de Cinquefrondi às oito da noite. Era quase uma da tarde. Comecei a choramingar. A minha interlocutora na alugadora chamava-se Cristina Ribaldo, era muito magrinha e tentou acalmar-me dizendo que conhecia muito bem um escritor português. Como se chama, perguntei eu. O livro era "Sostiene Pereira" ou algo assim. Ah, mas esse não é português, é italiano, chama-se Tabuchi. Mas agora isso não interessa. Sostiene Bernardi que a aventura italiana não pode acabar entre as sopas de um aeroporto. Fui tomar um café e pensar numa solução. A cafetaria era sporca, o empregado da cafetaria sporco era e ainda por cima esperto, fartava-se de mandar bocas na fímbria dos lábios que nem os italianos percebiam. Pedi um Spresso Lungo, veio um curto. Ouça lá, eu disse lungo. E ele, com uma unha de tocar guitarra ostentando uma linha preta de quase meio centímetro de sujidade, meteu a ponta do dedo dentro da pequena chávena e perguntou: e isto não é lungo? Não. E ele, contrariado e ruminando as piadas para trás, meteu-lhe mais uma gota em cima. Eu disse que não queria saber. Telefonei para o meu balcão, cujo demorou mais de uma hora a atender, e falei com a Sílvia, que, para sorte minha, era gerente e me resolveu a questão noutra hora. A magra da Cristina Ribaldo levantou-se para pedir autorização do upgrade de carro ao gerente e, realmente, a minha avaliação sobre a sua magreza fora espúria: era cintadinha e vivamente bem feita. Vai levar aqui uma bomba, um Clio ou assim, e eu até entendo que ela pensasse que eu achava o Clio uma bomba, porque eu tinha pedido um Panda. Regressei para junto do Dez-cartas, que me exigiu o sorriso que eu não tinha. Já não vou ver os miúdos. Deixa lá, pá. Mais tarde saberíamos que os ragazzi seriam atropelados por discursos oficiais durante três horas para dez minutos de desfile nas ruas, e só agora estava a começar o maravilhoso mundo da Cantábria, que, como verão, não tem méritos na organização, mas no lascia-andare, e aí reside um pouco do seu encanto e lição ao mundo. A Calábria é Legendriana. Tem o fervoroso coração italiano de tronco nu. Mas já lá vamos. Agora estou a insultar, a meias, o Dez-cartas e a GPS. "A" porque personalizei a menina que fala nos mapas do meu telemóvel e lhe chamo Gabriela Pereira de Sousa. Ora, o Dez-cartas deu a ideia: já que não conseguimos chegar a tempo da apresentação, porque é que não vamos almoçar a Pompeia e ver os corpos suplicantes? Era suposto a Gabriela tirar-nos de Roma, mas ela, em vez de nos levar para Pompeia, levou-nos para Pomeza, na zona industrial de Roma - confesso que aquilo era assustador. No rádio já tocava aquela que viria a ser a canção desta viagem, e que na altura me fez gritar com o Dez-cartas para que desligasse aquilo: "Sigarette", a nova do Neffa (eu nem sei quem é o Neffa, foi o Shazam que me disse). Sigarette la mattina la-la-lalla-la-la-la / sotto questa pioggia fina la-la-lalla-la-la-la. A Gabriela mandava-nos virar para becos sem saída, perdemos mais uma hora e acabámos a almoçar num McDonalds na orla de Roma, a tentar sentir-nos felizes. Quando regressámos à estrada, já ninguém queria ver ou visitar nada, só fazer quilómetros. E assim foi. Velocidade lenta na aproximação a Salerno, experimentação das inacreditáveis áreas de serviço da A3 com 35 graus cá fora, saída para a montanha em fila indiana por causa dos lavori in corso e a noite a cair: disseram-nos, ao longo desta semana, que toda a Itália são lavori in corso, sempre. Muitas horas depois, na aproximação a Vibo Valentia, já dentro da Calábria, finalmente, pudemos pressentir a beleza das vistas que levavam o nosso olhar até Reggio e à Sicília, em frente, mas era só um pressentimento que nos era dado pelo prateado da lua no mar ou pela linha de luzes na costa, ao longe, porque a noite se fechara sobre os montes. O trilho final foi feito por pequenas estradas comunais sem iluminação, e aí a Gabriela, que enlouquecera às portas de Roma, disse presente. E chegámos à nossa aldeia, Nicotera, um povoado antiquíssimo sobre o Mediterrâneo, por quelhas medievais remendadas, com os músculos da cara retesados e alma meia encomendada à providência. Estacionei junto a uma igreja e liguei ao anfitrião, Giovanni, que não falava inglês e tentou explicar onde ficava a que seria a nossa casa num labirinto onde não havia nomes nas ruas. Nessa altura já nem me lembrava que tinha vindo pelo Voleibol. O Giovanni teve de descer a aldeia toda com o seu Panda para nos dizer onde era a casa. Abriu a porta e estava quente, muito quente. Eu e o Dez-cartas começámos a pingar, o Govanni sequinho. Explicou-nos o básico e disse: prima colazzione são duzentos metros a subir até aos Terraços de não sei quê. No dia seguinte saberíamos o que são duzentos metros a subir: nem o Elevador da Glória. O Dez-cartas lá tomou banho num chuveiro que molhava a sanita toda e eu, na janela sobre o Mediterrâneo que só me devolvia prata, chorava a rir.

(continua no Volume 4)

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PG-M 2015
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