2015-07-31

(Volume 7) Bernardi e Francesca na Gioiosa Ionica (e talvez voleibol) - Novelle Italiane

VII    (volume anterior aqui)
Bernardi ficou popular em Cinquefrondi depois do episódio de Toto e Gardini.
Atraiu atenções que até ali se limitavam a uma simpatia externa pelo estranho simpático.
Talvez vos tenha mentido quando atribuí a mesmice de expressão de Bernardi, nos últimos dois dias, (falava apenas por lágrimas) à sintese do poema. Não era bem isso. No fim do primeiro jogo de Portugal, houve, para Bernardi, uma desaceleração do tempo: os olhos diáfanos de Francesca. Ela passou em câmara lenta no corredor da imprensa e dos fotógrafos, aos pés do Palazetto, olhou fugazmente para a bancada e Bernardi atirou-lhe
- Os teus olhos têm a mesma cor do sobremar calabrês.
- Cosa? No entiendo! - respondera Francesca, de fugida.
É comum que os italianos ouçam castelhano em todos os povos ibéricos e, se souberem algumas palavras, as usem com os portugueses, a quem agradecem regraciando, excepto Gardini, que sabia o que era um obrigado, e portanto também sabia agradecer em português. Não é difícil, realmente, aprender a palavra nacional de agradecimento dos três ou quatro povos que nos fazem vizinhança, mas também não é comum ouvir um italiano a dizer  "obrigado".
Convém também precisar a invenção de Bernardi: "sobremar" é uma palavra que não existia antes de Bernardi chegar all'estremo sud e olhar para o mar calabrês naquela primeira manhã. Explicou-me que a inventara para designar o mar perfeito, azul e homogéneo que se vê de um ponto alto, bem acima do nível do mar, mas "sobre o mar". Diz que designará um mar superior e alto. Pode chamar-se sobremar ao mar que se vê das montanhas madeirenses ou até das falésias alentejanas ou até da serra d'arrábida.
- Os teus olhos têm a mesma cor do sobremar calabrês, naqueles primeiros metros em que os corpos e os objectos não se podem esconder e tudo é transparente.
Francesca sorriu e seguiu.
É morena com os cabelos em flocos e uns óculos grandes e quadrados aparentemente sem lentes e com a exclusiva função de lhe emoldurar os olhos, caminha na cadência belucci dos melhores tempos e nem com a tshirt oficial do torneio perde o enlevo - aliás, a palavra Portogallo na tshirt é, para Bernardi, uma declaração de amor. Francesca seria o sortilégio de Bernardi. Nem o voo de um pica-pau negro sobre as montanhas rochosas de Aspromonte lhe mitigará o apego.
No manhã do último jogo de Portugal, já depois do episódio Gardini, Francesca apareceu-nos como uma mistura do coelho e do gato da alice do carroll, deu as cartas, às de copas, perguntou ao Bernardi se conhecia Gioiosa Ionica.
- Só pelo Toto, que disse que o mar Jónico era o melhor de todos os mares, mas o Toto exagera...
- No. È perfetto. Andiamo?
Uma águia azul planou, como fariam os atletas de Portugal, o vento quente do levante varreu os pêlos dos braços e as ervas altas, os lábios de Francesca estavam pintados de verde escuro e cheiravam a maçã, Bernardi reparou que as pestanas dela eram compridas e arciformes e roçavam nas lentes dos óculos, afinal os óculos tinham lentes, as mãos eram finas e compridas e melífluas e uma delas encaixou espontaneamente na sua. Bernardi olhou-me, entre o assustado e o feliz, e eu acenei que sim com os lábios cingidos e kiss-ready, expressão de aprovação de amigo. 
E Bernardi voltou a tomar conta do texto:
Fizemos todo o caminho para o mar jónico entre montanhas e com Francesca a olhar-me nos olhos pelo retrovisor central. Cheirava a lírios-brancos. Chegámos à Gioiosa Ionica, Francesca indicou-me uma praia vazia. Parámos, saímos, ela perguntou se eu tinha uma toalha, disse que sim, que a levasse. A praia era toda seixos cinzentos, Francesca deslizou até à primeira linha de mar, tirou o vestido canário pela cabeça, ficou em soutien e cuecas cor de pele, uma tez muito escura, quase árabe.
- È questo il tuo sobremare?
Sorri. Estúpidos somos nós, não elas. Nadou a trinta graus, eu fiquei estático sobre os seixos, uma sensação de impossibilidade encrespou-me, Francesca saiu lentamente verificando o próprio corpo, escorreu o cabelo e parou a um metro de mim:
- Sono fidanzata. Si può guardare, sentire l'odore, abbracciare, ma non baciare.
Não fiquei desiludido - prepara-me o arrepio da impossibilidade. Fiquei até grato: Francesca veio ao mar jónico dar-me, gentilmente, uma memória. Para a tatuar, perguntei:
- E dançar, pode-se?
Ballare se può. Pegámos nos respectivos telemóveis ao mesmo tempo, mas eu disse:
- Não, Neffa não, por favor não.
Francesca riu, depois dobrou o riso, despois desdobrou o riso.
Esta sim. Não uma clássica a compor um quadro perfeito e anódino. Se não se pode beijar
Let’s Marvin Gaye and get it on
You got the healing that I want
Just like they say it in the song
Until the dawn, let’s Marvin Gaye and get it on
(Marvin Gaye, Charlie Puth)
Há um toque de cha-cha-cha, o vento de levante, o cheiro a lírios-brancos e maçã, os lábios verde escuro, a fonte quente de Francesca, a mão melíflua a cingir-me, as ancas a marcar o ritmo e os pés a varrer os seixos.
Não a beijarei. Não já. Os pica-paus pretos e as águias azuis continuarão nas montanhas de Aspromonte e eu não a beijarei. Levarei, contudo, esta tatuagem, este final de manhã, princípio de tarde, para a nossa escala em Veneza. Descobrirei a ponte mais discreta e bonita do mundo para descrever uma paixão impossível. Não a Calatrava, não a Rialto, nenhuma do Canalasso, mas a ponte Giustinian, sobre a qual construirei mitos maiores do que os destes doze atletas exemplares e da minha Francesca.
E um dia, despois de nos rirmos muito das memórias da Calábria, de comermos tramezzini em rolo e bebermos san benedetto limone, beijá-la-ei no centro do arco da ponte.
E escreverei em grafitti contra as leis
Se può baciare. Per sempre.
Amanhã regressarei por ti all'estremo sud, para rematar todas as lendas.
(continua no volume 8 e último)
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PG-M 2015

(Volume 6) Sostiene Bernardi e o Voleibol em Itália - Novelle Italiane


VI   (volume anterior aqui)

Bernardi ficou consumido com o poema. A poesia pode ter esse efeito: sintetizar todos os sentidos do universo com a palma da mão que se abre para nela pousar o mundo ou outra mão, que é o mesmo. Foi por isso que Bernardi me passou a mim, Dez-cartas, a responsabilidade de escrever a crónica final em jeito de comentário desportivo. Os nossos meninos começaram e continuaram a perder, mas, a cada "Portuguesa", sentia-se incólume a alma lusitana que planava sobre as montanhas de Aspromonte. A forma mais dura e eficaz de aprender em qualquer nível de desporto é perdendo, com a vantagem de baixar a guarda dos adversários. Na verdade, tinham ganho em Dezembro à Espanha, que viria a ser segunda classificada numa final com negra a 16-14. A Itália tinha, realmente, um nível superior a todas as outras selecções, mas às vezes também se ganha com o coração. E ganham-se corações. Começar a perder e acabar a ganhar fez da equipa portuguesa a mais simpática de todas, com claque italiana nos últimos jogos. Giusy Bonini foi a intérprete e tradutora da selecção portuguesa, mas, além disso, trouxe para o Palazetto sport de Cinquefrondi uma cintilância que fez dela e de Gianluca, o rapaz das finanças do bar, as luminárias nativas das quinas que eu e Bernardi íamos polindo nas águas quentes do Mediterrâneo todos os dias. Vou contar-vos uma coisa extraordinária. No final do primeiro jogo, não sabíamos bem que direcção seguir para sair de Cinquefrondi. Então abordámos um casal maduro muito bonito, ele mais de dois metros, ela quase um e noventa, aquele tipo de loira italiana sobre a qual desceu toda a classe: "Prego, per Nicotera?", e ela, simpática, "oh, no lo so, ci stiamo arrivando da Bologna", e logo eu, "e noi da portogallo!"; ficou um sorriso também no marido gigante, mas o Bernardi não avançou. Quando olhei para ele estava com a boca aberta, em suspenso. Dez-cartas, disse-me, eu esperava tudo, garanto-te, mesmo tudo, menos encontrar aqui, em carne e osso, um ídolo da minha selecção de sempre, um dos seis, nunca. Quem, aquele gigante? Aquele gigante era o Gardini, o central que alternava com o Lucchetta. Não me digas. Digo. Queres ir pedir-lhe um...? Ah, não, não. E a semana continuou. Toto, o velho tiffosi teórico do clube local, o Jolly Cinquefrondi, falou das tácticas e das direcções ideais que il portogallo devia dar ao seu jogo, do que estava a falhar e do que o allenatore Guerra devia fazer, e Bernardi só lhe dizia: o que está a falhar é a cabeça, e é isso que neles vai crescer, mas dentro do crânio e de forma imaterial, que aqui não curamos dos grandes avanços da neurologia. Toto ouvia, mas não acreditava, que aqueles meninos eram muito mais do que estava à vista e então chegava a compará-los à célebre geração dos fenómenos italianos, que tinham vindo do nada, e estava sempre a apontar para Gardini, para Gardini, para Gardini, e a falar das jogadas do mundial de 1990, o que para Bernardi era música. Toto não ficou muito espantado quando Bernardi lhe explicou que lhe chamavam Bernardi precisamente por causa disso, pela sua obsessão pela mesmíssima equipa, que tinha como uma espécie de ídolo colectivo, mas essa ausência de espanto é muito típica, não dos calabreses, mas de todos os italianos, que foram uma eternidade, e ainda sentem que são o centro do mundo. Foi esse centro do mundo intumescido, ensoberbecido, do italiano Toto, que quase deu a primeira e única desinteligência da semana. Depois do primeiro set do Portugal - Itália, Toto passa junto ao court e faz gestos para a bancada, na direcção de Bernardi, que se tornara seu companheiro de conversa e intervalos. Estendeu as duas mãos abertas e depois fez um dois com os dedos, "dodici punti", disse, voltou a estender as duas mãos abertas, depois mais uma e outro dois com os dedos, "diciassiette minuti", e seguiu caminho na direcção do bar de Gianluca. Bernardi desceu calmamente da banca, o peito ebulia, chegou-se ao mesmo bar, cheio de italianos, e disse, em italiano escorreito: "Non ho bisogno che mi ricordi i punti o i minuti". E, imediatamente, funcionou a generosidade italiana. Perceberam que não estavam num refrega regional, mas numa disputa internacional que era de crescimento para todos: eram crianças a virar homens, senhores. "Hai ragione, Bernardi, hai ragione", disseram Gianluca e Nicola. Toto tomou as mãos de Bernardi, olhou-o nos olhos e ainda disse "Scusa" e pagou-lhe tudo o que ele precisou do bar naquela noite. Repetiu esse "Scusa, Bernardi" mais umas vinte vezes. Bernardi, olímpico, ainda declarou, para todos ouvirem: "per me, questi ragazzi sono tutti della stessa squadra". Até serem seniores, precisou. Mas mesmo depois, porque é natural que muitos joguem no estrangeiro, na mesma equipa. Gardini, sempre a uma distância higiénica, como convém a qualquer ídolo, tinha vindo ver o filho jogar numa jovem selecção italiana onde também evoluía o filho de outro ídolo da selecção de 1990: Cantagalli. Gardini ouviu o protesto límpido do português, ele e Aldo Bonini, eminência local. Aldo estendeu a mão a Bernardi e disse: "Grazie per la civilitá". Gardini, gigante, cingiu Bernardi pelo ombro e tomou-lhe um cachecol dos "Portugal Young Braves". "Posso?", perguntou Gardini. Bernardi, de todas as cores, deixou que Gardini levantasse o cachecol e o fizesse pousar sobre uns ombros imensos. Disse "obrigado", mesmo assim, "obrigado" em português bem explicado, mudou o braço do ombro de Bernardi para o ombro da mulher, a loira que distribuía classe, e afastou-se na noite de Cinquefrondi. Bernardi, que depois do poema só expressava as coisas por lágrimas, expressou-as uma vez mais. Gardini, o seu ídolo, tinha os ombros universais forrados do futuro dos meninos: "Portugal Young Braves". No dia seguinte, sem ninguém o esperar, Portugal U17 reconheceu-se finalmente ao espelho na manhã calabresa, foi imperial e venceu a Holanda por 3-0. Não que perder fosse mau, mas ganhar é outro tipo de identidade e talvez a poesia e a literatura não cheguem. Gardini sim, chegou e sobrou.

(continua no Volume 7)

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Dez-cartas 2015

(Volume 5) Sostiene Bernardi e o Voleibol em Itália - Novelle italiane

V    (volume anterior aqui)

Nota prévia: Dez-cartas, tens um papel para eu alinhar os versos? Começou a tocar "A Portuguesa", ali, all'estremo sud, tão longe de casa, e eu não contive as lágrimas que me queimaram o poema; os nossos heróis de mão sobre o coração e o poema deles a arder assim:
afonso está parado no ar com os braços desdobrados
e as mãos ilegíveis
ilude o palácio na curta para o central
david salta na vertical
a bola voa de costas para a zona dois
guilherme levanta voo da um
roda a roleta e bate
à frente dos três
capum
diagonal limpa a cair
na um do opositor
que devolve
kiko desenha uma prancha
a bola na pinta álvaro
empurra para o ponta
andré sobe e varre
a linha
marco de chaimite
dispara os directos
o terceiro fica
em jogo, diogo a.
faz de muro com
paulinho

a bola ressalta
a bola sobe

diogo o. bate seco
na longa oblíqua
max joga o pensamento no
bloco sobra
o triângulo curto
com sinfrónio
capum
zona um

foram vistos em bando
nas montanhas
de aspromonte
são aves de alma austral
planando por portugal

Bernardi 2015,
nas bancadas do Palazetto Sport de Cinquefrondi

PS: entreguei o papel ao Dez-cartas, que se iluminou de patriotismo e chorou

(continua no volume 6)

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2015-07-30

(Volume 4) Sostiene Bernardi e o Voleibol em Itália - Novelle Italiane


IV     (volume anterior aqui)


O quarto era fresco, mas a cama era de casal, o que não seria um problema, não fosse o cochilo algo edipiano do meu amigo filósofo. À décima vez em que ele assumiu a posição fetal trancando a minha perna esquerda entre as dele, resolvi levantar-me. Seriam umas seis da manhã em Itália, portanto cinco no meu relógio interno. Subi e puxei uma cadeira para a janela sobre o Mediterrâneo. Sentei-me com o braço estendido no parapeito. Se eu fosse escritor, teria aqui um problema de cifra. Creio que, para um escritor, todas as emoções intensas serão cifras, aparecem-nos como ovnis no firmamento, a projectar um feixe redondo de luz sobre o bloco do nosso peito e a tentar abduzir os órgãos onde a tradição dá residência aos sentimentos. Felizmente não sou escritor, posso limitar-me a sentir e, se preciso fosse, em vez de escrever chorava o que naquele cenário transcendesse as minhas forças e o corpo em si. As lágrimas viriam quentes, como as águas daquele mar, azuis como o seu reflexo. O tempo passa depressa quando se observa a perfeição: creio que somos narcotizados e cada minuto vira fatias mais grossas da hora. O Dez-cartas apareceu esgrouvinhado pelas oito, perguntou se era verdade, se estávamos mesmo ali, se houvéramos atravessado o Lácio a remoer, se tínhamos atravessado as montanhas mais míticas a olhar para o relógio, se trincáramos sandes de presunto e ricotta em estações de serviço a queixarmo-nos dos lavori in corso. Era isso mesmo. Abracei-o por me dar mais sentido e proporção do que qualquer escritor, mas expliquei-lhe - uma necessidade dos heterossexuais com teias de aranha na cabeça, como eu - que não era gay nem pensava tornar-me um, muito menos em Itália, pedi-lhe que não ficasse magoado comigo por, na próxima noite, eu patrocinar a empreitada de uma muralha de almofadas na linha central da nossa cama de casal. Então começámos a subida para a prima collazione do Giovanni. Não há descrição possível para aquela subida para  o pequeno almoço. Nos dias seguintes o Dez-cartas suplicar-me-á para levar carro, mas eu vou recusar por duas ordens de razão: é perigoso conduzir o carro alugado naquelas quelhas e não temos franquia zero, a primeira; viver a aldeia é vivê-la como a vivem os locais, e os locais não pegam no carro por tudo e por nada, a segunda. Por isso, caluda, o Giovanni só veio de Panda ontem à noite porque tinha um espectáculo a decorrer no seu bar. Pois a subida só se pode fazer com o rabo para trás e o peito quase no chão: de facto, as velhas italianas não sobem assim por velhice, mas por sabedoria. Esqueçam lá o elevador da glória, ou então concedam-lhe ainda mais inclinação e multipliquem a extensão por quatro. Mas talvez seja injusto dizer que qualquer pequeno almoço sabe bem naquelas condições. Os croissants e os brioches são fresquíssimos e, pelo visto, uma tradição italiana que o pão, na prima collazione, não é. O Giovanni trouxe também, à margem, um iogurte gelado de café que nos deixou os olhos cerrados. Os bofes à chegada haviam sido substituídos por gemidos. O Giovanni não pesca uma palavra de inglês, o que, neste contexto, deixou a mesa ainda mais animada e gesticulante. Depois de atravessar a bonita Piazza Garibaldi, de onde este herói italiano lançou a ofensiva para a libertação de Itália da Áustria, tem-se uma maravilhosa vista sobre a marina, que é como em Itália se chama às povoações que servem o mar. O Giovanni aconselhou-nos a ir à praia Groticelle, perto do Capo Vaticano, que ele vendeu como uma das mais belas do mundo. Sem desmerecer, temos umas cinquenta, entre o Algarve e Lisboa, tão ou mais bonitas, mas o que não temos é água do mar a trinta graus. O Dez-cartas parecia um bebé excitado, sempre a chamar-me para a água, mas eu precisava de deixar assentar a existência. Mesmo depois das duas horas matinais de meditação, tinha acabado de conduzir trinta minutos entre Nicotera e Capo Vaticano: recordo, estou em Itália, na Calábria. Sei bem que temos de nos adaptar à condução em todos os países, e, mesmo dentro de Portugal, há alguma diferença entre Lisboa e Porto (pensamos, de parte a parte, que os outros é que são os loucos), mas nunca mais digo mal dos condutores portugueses depois desta meia-hora. Em abono da verdade, os calabreses não são tão agressivos como os nós, ou seja, fazem as asneiras e toleram as asneiras dos outros quase em silêncio, ao contrário de nós, que, ao mínimo comportamento desadequado ou desritmado, perseguimos e insultamos o condutor relapso. Os calabreses não. Passam contínuos de forma descarada, não dão pisca para nada, estacionam de repente na berma, abrem a porta e saem antes de nós, que circulamos imediatamente atrás, passarmos, só buzinam para se cumprimentarem, não para reclamar. A adaptação é no sentido da ocupação do espaço: se nos aproximamos de um cruzamento, não devemos ser cautelosos, ou eles entram mesmo - devemos, sim, acelerar para ocupar o nosso território de forma assertiva. É menos perigoso assim, sendo lavajão como eles. Esta personalidade do lascia-fare acabará por se incorporar em nós na forma de generosidade. Este jeito de se atirarem de cabeça, primeiro, e perguntar depois é, aliás, a autenticidade apaixonada que muitos de nós procuram na própria vida. Pois eu pensava nisto enquanto o outro se atirava de cabeça para a água cristalina e quente do Mediterrâneo. Dividimos um spaguetti pomodoro basílico com os pés na areia, fomos a casa tomar banho e trocar de roupa, estava tanto calor que viemos mais molhados do que chegámos, mas sem sal. Vestimo-nos como tiffosi portugueses e agora só faltava encontrar o pavilhão. Não foi fácil, porque os italianos dão indicações como se todos dominássemos perfeitamente os princípios básicos do vocabulário das indicações em italiano e porque só um em cinquenta fala inglês. Se não sabemos, por exemplo, que "pavilhão" se diz em italiano "palazetto sport", não vamos a lado nenhum. Pois o pavilhão de Cinquefrondi ficava depois de um improvável e estreito túnel que parecia levar ao próprio inferno. Mas não. Em breve estaríamos sentados no paraíso, ou seja, nas bancadas gotejando suor e derramando a honra pátria e a beber o spresso lungo e a comer a maravilhosa macedonia (salada de frutas) do bar do Gianluca e do Nicola. Nada será o mesmo depois de Cinquefrondi. Hoje os rapazes usam o equipamento alternativo, calção azul e camisola branca, os italianos nas bancadas dizem que parece a Itália. Preparo-me então para fazer um poema com a arte dos nossos voleibolistas. Dez-cartas está maravilhado. Olha como eles voam, Bernardi! Olha como eles voam. Quero contar-te a final daquele mundial dos meus ídolos italianos, Dez-cartas, mas primeiro vou fazer um poema sobre estes doze. Do campo começam a vir sorrisos. Ver a bandeira portuguesa no punho de portugueses a três mil quilómetros de distância já não é só o capricho de um parasita que usou os retroactivos de uma pensão social rafada para ajudar à criação de um mito precoce. Em breve se calarão os Sigarette do Neffa e começará a portuguesa do Alfredo Keil, que os nossos meninos não ouvirão apenas em sentido, como dizem as regras de etiqueta, mas sentindo activamente a honra, à americana, com as mãos direitas sobre os respectivos corações.

(continua no Volume 5)
também pode ler Volume 1, Volume 2 e Volume 3

PG-M 2015

2015-07-29

(Volume 3) Sostiene Bernardi e o Voleibol em Itália - Novelle italiane



III    (volume anterior aqui)

O avião deu várias voltas a Roma. Disse-me o Dez-cartas, entretanto esperto, que o piloto aguardava autorização da torre de controlo para aterrar. Os atletas nacionais foram levantando a cabeça à medida que o movimento da nave se tornava menos coerente. A cada volta o avião assumia uma grande inclinação e os "olha o Coliseu", "olha o Vaticano" do Dez-cartas irritavam-me a mim e excitavam os miúdos, que olhavam de forma oblíqua para trás a ver se ele estava a brincar e depois procuravam nos terraços de Roma, pelas janelitas do avião, a solução. Os nervos fizeram-me recapitular a meia-final do mundial de voleibol de 90 entre o Brasil e a Itália e o Dez-cartas pareceu genuinamente interessado, até porque quis saber onde era a zona um, eu disse que era logo a do serviço e que as zonas, no court de voleibol, se contavam ao contrário da rotação, que por sua vez se fazia no sentido dos ponteiros do relógio. Portanto, a rotação, em voleibol, é a favor do tempo, mas conta-se contra ele. Então, deixa-me ver, o Lucchetta, para bater a bola ao centro da rede para uma zona entre a um e a dois...hum....deve ter sido muito bonito. E quando dizes segunda linha, queres dizer o quê? Há uma linha riscada a três metros da divisória dos campos que define o ataque e a defesa. Atacas à frente dela, defendes atrás dela. O ataque tem uma área que é metade da defesa. Quando atacas atrás da linha dos três metros, atacas de segunda linha. E o cubano Despaigne atacava assim? O Despaigne era solicitado em quase todos os pontos do campo. E era eficaz? Muito. Saltava atrás dos três metros, batia em voo na projecção do metro e meio, de cima para baixo, com muita violência, muitas vezes a quatro metros de altura. Os miúdos olhavam de lado. Os parolos falam de voleibol? Olha o Coliseu, olha o Vaticano, ai que estamos a descer, é como se o avião fosse pisando o degrau inferior, os flaps das asas cada vez mais abertos, travão a fundo, palmas, estamos no chão. Abraço o Dez-cartas comovido. Estavas com medo? Sim, isso e nem acredito que estou na Itália com que sonhei toda a minha vida. Começámos a odisseia aeroportuária para ir buscar o carro alugado. Os balcões romanos de aluguer pareciam a fila da sopa, com a agravante de que não se pode reclamar qualquer dignidade para a necessidade de um carro, muito menos compará-la com a fome, disse, e com toda a razão, o Dez-cartas. Mas isto é triste. E a ansiedade na cara das pessoas, certas de terem sido apanhadas numa espécie de armadilha? E as surpresas, e os sobre-custos? Chegou a minha vez e comecei a aprender. Perguntaram-me se aceitava um Panda automático. Nunca conduzi um carro automático. A minha interlocutora na alugadora disse que também não, que me tentaria arranjar um carro melhor, porque os Pandas manuais estavam todos ocupados - melhor, deixe-me ser sincera, disse ela, não mandamos carros menos seguros para o sul de Itália -, mas que, além disso, havia um problema. Nunca tinha usado o cartão de crédito que o banco teimara em dar-me. Mas a Nádia da agência de viagens pediu-me tantas vezes um cartão de crédito que eu cedi o meu e dei-lho. E assim reservou ela tudo, avião, carro, dormida. Os valores só seriam descontados no final, mas disseram-me no balcão da sopa que o meu cartão não estava autorizado. O Dez-cartas tinha um, mas não conduzia, não pode ser. Ofereceram-me o telefone para ligar à Nádia, mas a Nádia disse que não podia fazer nada, que provavelmente tinha um plafond. Mas se eu ainda não gastei tostão e eles todos aceitaram as reservas e tenho para aí dez mil euros à ordem? Tentei que me aceitassem a garantia em dinheiro, mas nada. São regras. O Dez-cartas via-me nervoso e pedia, ao longe, que me acalmasse. Estava de guarda às malas. À volta dele a diáspora. Pelas minhas contas, eram pelo menos sete horas de viagem para o sul de Itália e os meninos desfilavam nas ruas de Cinquefrondi às oito da noite. Era quase uma da tarde. Comecei a choramingar. A minha interlocutora na alugadora chamava-se Cristina Ribaldo, era muito magrinha e tentou acalmar-me dizendo que conhecia muito bem um escritor português. Como se chama, perguntei eu. O livro era "Sostiene Pereira" ou algo assim. Ah, mas esse não é português, é italiano, chama-se Tabuchi. Mas agora isso não interessa. Sostiene Bernardi que a aventura italiana não pode acabar entre as sopas de um aeroporto. Fui tomar um café e pensar numa solução. A cafetaria era sporca, o empregado da cafetaria sporco era e ainda por cima esperto, fartava-se de mandar bocas na fímbria dos lábios que nem os italianos percebiam. Pedi um Spresso Lungo, veio um curto. Ouça lá, eu disse lungo. E ele, com uma unha de tocar guitarra ostentando uma linha preta de quase meio centímetro de sujidade, meteu a ponta do dedo dentro da pequena chávena e perguntou: e isto não é lungo? Não. E ele, contrariado e ruminando as piadas para trás, meteu-lhe mais uma gota em cima. Eu disse que não queria saber. Telefonei para o meu balcão, cujo demorou mais de uma hora a atender, e falei com a Sílvia, que, para sorte minha, era gerente e me resolveu a questão noutra hora. A magra da Cristina Ribaldo levantou-se para pedir autorização do upgrade de carro ao gerente e, realmente, a minha avaliação sobre a sua magreza fora espúria: era cintadinha e vivamente bem feita. Vai levar aqui uma bomba, um Clio ou assim, e eu até entendo que ela pensasse que eu achava o Clio uma bomba, porque eu tinha pedido um Panda. Regressei para junto do Dez-cartas, que me exigiu o sorriso que eu não tinha. Já não vou ver os miúdos. Deixa lá, pá. Mais tarde saberíamos que os ragazzi seriam atropelados por discursos oficiais durante três horas para dez minutos de desfile nas ruas, e só agora estava a começar o maravilhoso mundo da Cantábria, que, como verão, não tem méritos na organização, mas no lascia-andare, e aí reside um pouco do seu encanto e lição ao mundo. A Calábria é Legendriana. Tem o fervoroso coração italiano de tronco nu. Mas já lá vamos. Agora estou a insultar, a meias, o Dez-cartas e a GPS. "A" porque personalizei a menina que fala nos mapas do meu telemóvel e lhe chamo Gabriela Pereira de Sousa. Ora, o Dez-cartas deu a ideia: já que não conseguimos chegar a tempo da apresentação, porque é que não vamos almoçar a Pompeia e ver os corpos suplicantes? Era suposto a Gabriela tirar-nos de Roma, mas ela, em vez de nos levar para Pompeia, levou-nos para Pomeza, na zona industrial de Roma - confesso que aquilo era assustador. No rádio já tocava aquela que viria a ser a canção desta viagem, e que na altura me fez gritar com o Dez-cartas para que desligasse aquilo: "Sigarette", a nova do Neffa (eu nem sei quem é o Neffa, foi o Shazam que me disse). Sigarette la mattina la-la-lalla-la-la-la / sotto questa pioggia fina la-la-lalla-la-la-la. A Gabriela mandava-nos virar para becos sem saída, perdemos mais uma hora e acabámos a almoçar num McDonalds na orla de Roma, a tentar sentir-nos felizes. Quando regressámos à estrada, já ninguém queria ver ou visitar nada, só fazer quilómetros. E assim foi. Velocidade lenta na aproximação a Salerno, experimentação das inacreditáveis áreas de serviço da A3 com 35 graus cá fora, saída para a montanha em fila indiana por causa dos lavori in corso e a noite a cair: disseram-nos, ao longo desta semana, que toda a Itália são lavori in corso, sempre. Muitas horas depois, na aproximação a Vibo Valentia, já dentro da Calábria, finalmente, pudemos pressentir a beleza das vistas que levavam o nosso olhar até Reggio e à Sicília, em frente, mas era só um pressentimento que nos era dado pelo prateado da lua no mar ou pela linha de luzes na costa, ao longe, porque a noite se fechara sobre os montes. O trilho final foi feito por pequenas estradas comunais sem iluminação, e aí a Gabriela, que enlouquecera às portas de Roma, disse presente. E chegámos à nossa aldeia, Nicotera, um povoado antiquíssimo sobre o Mediterrâneo, por quelhas medievais remendadas, com os músculos da cara retesados e alma meia encomendada à providência. Estacionei junto a uma igreja e liguei ao anfitrião, Giovanni, que não falava inglês e tentou explicar onde ficava a que seria a nossa casa num labirinto onde não havia nomes nas ruas. Nessa altura já nem me lembrava que tinha vindo pelo Voleibol. O Giovanni teve de descer a aldeia toda com o seu Panda para nos dizer onde era a casa. Abriu a porta e estava quente, muito quente. Eu e o Dez-cartas começámos a pingar, o Govanni sequinho. Explicou-nos o básico e disse: prima colazzione são duzentos metros a subir até aos Terraços de não sei quê. No dia seguinte saberíamos o que são duzentos metros a subir: nem o Elevador da Glória. O Dez-cartas lá tomou banho num chuveiro que molhava a sanita toda e eu, na janela sobre o Mediterrâneo que só me devolvia prata, chorava a rir.

(continua no Volume 4)

também pode ler Volume 1 e Volume 2

PG-M 2015
fonte da foto

2015-07-28

(Volume 2) Sostiene Bernardi e o Voleibol em Itália – Novelle Italiane



II   (volume anterior aqui)

Brasil, Maracanãzinho, 27 de Outubro de 1990, cerca de vinte mil brasileiros nas bancadas, algumas centenas de italianos, meia-final do mundial de voleibol, joga pela Itália a chamada geração dos fenómenos, mas a equipa que limpava tudo, com um magnífico Joe Despaigne como estrela, era mesmo Cuba; – expliquei eu ao Dez-cartas, tentando abstrair-me das manobras do avião no aeroporto de Lisboa,  a preparar a descolagem. Pedi ao Dez-cartas para ficar à janela, era a primeira vez que andava de avião, tudo me parecia fora de escala, tudo menos a jovem selecção portuguesa. Tivemos de ir apanhar o voo a Lisboa, a Nádia, da agência de viagens da nossa aldeia, disse que era a melhor alternativa tão em cima do Europeu, protestou por terem marcado a prova para tão longe e o Dez-cartas ofereceu-se para levar o carro dele – que por acaso é um Panda – até Lisboa e, como viemos de madrugada e o voo era logo às seis e tal da manhã, eu sugeri ao Dez-cartas que deixasse o carro mal estacionado num quelha perto do aeroporto que eles chamam de segunda circular, parece que é a viela que define psicologicamente as classes de tiffosi portugueses e os divide entre o verde da esperança e o vermelho da paixão (há uma versão pessimista, diria mesmo arrivista, de que aqui não curaremos), disse o Dez-cartas e eu não tenho culpa, porque eu só abri a boca para lhe explicar que o preço do reboque pelo estacionamento na segunda circular era mais barato do que o estacionamento no aeroporto durante uma semana. O Dez-cartas manobrou o carro numa zona da segunda circular em que não há rails de protecção e deixou-o ali perto da BP, à sombrinha, debaixo de uma árvore de um jardinzinho muito bonito e prático. Tirámos as bagagens de mão e fizemos aquele bocadinho a pé. Como só levávamos bagaglio a mano, a Nádia disse que podia fazer o check-in online e que podíamos ir directamente ao controlo de bagagem. Como não sabíamos bem como fazer isso, perguntámos a um senhor com uma camisa da Ana, não que algum de nós conhecesse a Ana, mas porque nos pareceu o mais prático, mas ele limitou-se a falar para um walkie-talkie e a gemer monossílabos que nenhum de nós entendeu. Eu sorri-lhe, o Dez-cartas sorriu-lhe, mas nada: ficou, não impávido, não sereno, mas teso e com umas gotículas de suor a escorregar-lhe da testa que o Dez-cartas me explicou serem a sublimação da fúria. É nesta altura que vemos os miúdos da selecção nacional que virão a ser os nossos ídolos e o nosso refúgio, não no farwest, mas all’estremo sud. Primeiro salvamento. Eu e Dez-Cartas estamos vestidos de verde e vermelho da cabeça aos pés, com cachecóis alusivos que adquirimos ao merchandising oficial e dizem “Portugal Young Braves”, para serem entendidos pelo mundo inteiro. Consigo um autógrafo do André M e do Diogo O, porque os outros, embora com aquele sorriso lúteo do medo, não se chegaram às fitas exteriores do check-in. Os corredores para controlo de bagagem são em zigue-zague: faz-se um quilómetro para percorrer quinze metros. Tenho uma condição cardíaca e a menina da segurança, que está formatada para intimidar, tem de me abraçar e amparar. Nem assim consigo passar os líquidos, e tenho mesmo de pagar três euros por uma garrafa de água na zona de trânsito. O embarque foi mais calmo e eu até percebo certas pessoas mais experimentadas que querem fingir que viajar de avião é o seu dia a dia. Nunca olham para os quadros de informações ou, uma vez dentro do avião, também não olham pelas janelitas, lêem muito e nunca rebatem a cadeira antes do tempo, como nós, parolos. E, como eu antecipei que a descolagem ia ser um momento definidor no meu espectro gnoseológico, preferi desviar o assunto para a geração-fenómeno italiana nessa meia-final do mundial de voleibol de 1990. A equipa principal costumava ser Lorenzo Bernardi, claro, e Luca Cantagalli como pontas, Zorzi a oposto, Paolo Tofoli distribuidor, e os centrais, dois Andrea: Gardini e Lucchetta. Lembro-me disto, não sei se foi mesmo assim, mas tu percebes, Dez-cartas. Brasil e Itália estão empatados a 12 na negra. O "murazo" italiano opõe-se ao ataque brasileiro. 13-12 para a Itália. Na jogada seguinte, Bernardi recebe como nos livros, Tofoli passa – colocando as mãos de forma a que o central brasileiro sinta que tem de saltar ao bloco para um bola rápida do central italiano, mas Tofoli empurra a bola para a ponta e Cantagalli bate à linha; 14-12;  Brasil faz um ponto, 14-13, e serve, recebe Cantagalli e corre novamente para a ponta, Tofoli coloca outra vez as mãos de forma a não serem lidas e faz o passe curto, em salto, para o central, Lucchetta, que bate limpo para a zona um. Quer dizer, a bola cai ali na zona intermédia entre a um e a dois. A Itália está na final do mundial do Rio de Janeiro. O avião está no ar. Dez-cartas já dorme. Os miúdos da selecção vão sentados a dez metros de mim, mas, apesar dos meus acenos, nem um olha. Que profissionalismo. Penso que, mal Dez-cartas acorde, tenho de lhe explicar que a final do mundial de 1990 vai ser Itália-Cuba, que Cuba ganhou na primeira fase à Itália por 3-0, e que se ergue esse monstro do voleibol mundial que é o Joel Despaigne, que atacava a mais de quatro metros de altura, bloqueava apenas quinze centímetros abaixo e chegou às trezentas e cinquenta internacionalizações por Cuba. Curiosamente, é um ídolo popular, porque os lugares oficiais tendem a ignorar os diamantes do Fidel, o Despaigne e, mais tarde, o Leonel Marshal, que tinham algumas parecenças em estilo de jogo (dizem as lendas que Marshal chegou a saltar 1,70m). Despaigne acabou por vir, claro, para Itália, onde todo um povo, do voleibol e fora dele, o venera e respeita. Treina uma equipa da segunda liga italiana, mas não sei se ainda salta mais de um metro. Aposto que sim. Esperem que o Dez-cartas acorde para eu lhe contar isto. Não falta muito para chegar a Roma.

(continua no Volume 3)
também pode ler o volume 1 aqui
PG-M 2015
fonte da foto (Andrea Lucchetta)

2015-07-21

(Volume I) Sostiene Bernardi e o Voleibol em Itália - Novelle Italiane

 I
Não me chamo Bernardi. No entanto, metade da vila piscatória onde ora resido chama-me Bernardi. Não sabem de onde cheguei, um dia, de repente, nos idos de dois mil e tal, com uma obsessão pela geração de ouro do voleibol italiano e clamando, num sotaque trentino, que Lorenzo Bernardi era o melhor jogador de voleibol de sempre. Que finalmente a FIVB o tinha reconhecido como tal - com efeito, ser o melhor do século XX é ser o melhor de sempre. No dia em que cheguei envergava a camisola número 15 do USA Volleyball Team com Kiraly a encimar o dorsal. Ninguém no Café Central contrapôs que Kiraly tinha ganho a distinção ex-aequo com Bernardi, nem podia saber que, verdadeiramente, eu não gostava de Kiraly. Ninguém no Café Central podia ou queria saber.
A metade da vila que me chama Bernardi considera-me meio louco. A outra metade não  me chama nada nem tem opinião formada. Não é rigoroso dizer, contudo que, estatisticamente, toda a vila me atestou, perante a autoridade sanitária central, como vinte e cinco por centro louco. Não obstante, foi isso que atestou o Doutor Remédios que, como é consabido, conseguiu concluir o curso de Medicina sem nunca ter feito Matemática: conclui ele e atestou que, como metade da vila considerava o indivíduo Barnardi meio louco e a outra metade não tinha opinião formada, conclui-se e atesta-se que tal indivíduo tem vinte e cinco por centro de incapacidade para o trabalho, devendo por isso ser colmatada a falta pela sociedade e ter o indivíduo direito a uma pensão que se fixa em (preencher) Euros. Estive um ano para que o bom do Doutor Remédios preenchesse o valor que me devia ser pago. Entretanto, vivi a esmola. Ontem foram-me pagos os retroactivos. A primeira coisa que o Dez-Cartas, o filósofo do Café Central, me disse depois de lhe mostrar o envelope com o dinheiro e a factura à sociedade, sabendo da minha obsessão por voleibol, é que o filho do advogado que me tratou do caso pro bono parte para Itália amanhã para jogar pela selecção nacional sub-17 de Portugal. Se guardas isso, a senhoria, que é uma ladra, vai roubar-te tudo, nomeadamente exigindo as rendas atrasadas e reparação dos buracos dos parafusos para afixação de posters emoldurados de voleibol. Depositas o valor legal na Caixa e vais ver a selecção a Itália. Foi pelo Dez-Cartas que soube que o  Doutor Remédios tinha sido remetido administrativamente para a glória de licenciado na confusão dos saneamentos da liberdade - era, pois, um lutador e um indivíduo credível. Adoptei o alvitre como brilhante: o que podia ser melhor para o desfrute da pureza do voleibol do que ir apoiar uma equipa sem adeptos que era o embrião do futuro? Um dia, disse o Dez-Cartas, arrecadarás comenda pelo estatuto de cordão umbilical destes miúdos voadores e o país, não apenas a aldeia, se encurvará deante de ti - e disse-o assim mesmo, não perante, mas deante, com pedante arcaísmo. Fomos ambos à agência de viagens do povo, cuja abriu só para nós -  a agência de viagens tinha a vidraça mais marcada pelas nossas testas do que pelo limpa-vidros, porque lá passávamos horas a estudar folhetos desbotados de viagens impossíveis.

(continua no volume II)

PG-M 2015
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