2016-11-23

te echo de menos

 te echo de menos

a expressão espanhola para saudade também é bonita.

fiz-te de menos

ontem lembrei-me de como foste dos primeiros a dar-nos uma nova noção de tempo


era um funeral, e havia alegria no ar, e não era só a alegria do reencontro com os homens e mulheres mais importantes da nossa vida, os professores, nem aquele belíssimo pânico de os ver procurar com a memória que alunos éramos

estão tão mais bonitos, os professores.
quando eram os nossos professores, eram velhos por natureza.
agora somos nós os velhos e eles da nossa idade.
bonitos e cuidados, sábios, serenos, sem poder

só conhecimento

a alegria eras tu e o comprimento da tua obra


comentei com o lima​ que nunca tinha visto um funeral tão feliz
estavas a descer à terra e havia gargalhadas
o coveiro a devolver-te à matéria original, que é a mesma que resulta de ti, e abraços entre campas

eu de pé a tomar café e a falar de como a linguagem e o silêncio e o ouvido e a atenção revolucionam o próprio tempo
tu és um dos grandes culpados de, afinal, isto não ser só isto e de
morrer não ser bem morrer

depois ouvi falar de ti, do teu apagamento físico, por quem em nosso nome cuidou de ti e te mimou até ao último minuto
um apagamento físico irrelevante para o mundo, ou só relevante na medida do teu sofrimento: nada para lá do que te doeu importa
não havia choro ou abandono ou pena, as pessoas que contavam o drama da tua doença sorriam, porque, a par de cada perda, havia sempre a tua resiliência, a tua teimosia

talvez seja piedade dizer para não te ir ver, porque estavas pele e osso,
estar deitado dá cabo de nós todos, faz-nos desaparecer fisicamente,
faz-nos assumir a postura da defesa perante a impossibilidade de sermos o que nos ergueu e nos fez evoluir

afinal não parecia ser isso o importante para ti

o alzheimer levou-te as forças, o conhecimento - e é injusto
ter-te cabido uma doença do conhecimento

logo a ti

o alzheimer levou-te tudo, mas não a presença de espírito
nunca desapareceste
foste teimoso até ao fim
ressurgiste muitas vezes
estavas deitado, estavas presente,
não o corpo, já não o corpo,
tu

como agora, afinal

já não o corpo, tu

já não conseguias comer sólidos, mas comias bem
o que podias comer
comeste sempre bem

e continuavas a combater pela tua fleuma, pelos teus hábitos,
ainda lutavas pelos artigos dos jornais que querias ler, pedias  a coluna do rangel e, quando ta davam, sorrias, sentavas-te, punha-la perante ti e não lias

nestes útlimos tempos, já não lias

só replicavas o prazer de ler
o prazer de pensar
replicavas a busca do conhecimento
o arrebatamento do passo em frente
o trabalho
a graça disse que, mesmo agora, no fim, quando regressamos à aparência
da criança que nunca deixámos de ser,
cada vez que ela aparecia ias a despacho

a graça aparecia à porta e tu
puxavas de uma almofada e escrevias com o dedo


assine aqui, senhor padre,
e ali,
e ali,


e tu assinavas

todos pensamos na própria morte perante a morte dos outros

na verdade, não pensei muito na minha, ontem.
pensei mais na eternidade

o teu quarto ficou cheio de livros e papéis
e quem te amou sabe que está aí
a eternidade

não apenas a tua, toda a eternidade

aí e no que levamos de ti connosco
e passaremos aos nossos
e os nossos passarão aos seus
e os deles aos deles
intimamente


infinitamente

dormiste sempre no nosso colégio, morreste onde dormiste

deitado na almofada

já não o corpo, tu

como agora, afinal

já não o corpo, tu



PG-M 2016
foto propriedade do Colégio dos Carvalhos