2017-12-09

A (eterna) professora e o (eterno) aluno

Porque me honra profundamente, vindo da cátedra como veio, e porque me comove, por momentos e razões que não quero aqui escalpelizar, porque já passou a quinzena deste JL nas bancas (esta semana está a Ana Margarida de Carvalho na capa), publico hoje a recensão completa da Professora Agripina Vieira ao Saramaguíada. Obrigado aos que entendem que este ofício exige o máximo esforço e o máximo respeito. Como se pode ler na epígrafe de Maria Victoria Atencia no início do livro, "Porque duele, el alma duele (...). (clicando na foto, conseguem ler - ou então em texto,a seguir)

"NAS MARGENS DO TEXTO, Jornal de Letras, Novembro de 2017
Agripina Carriço Vieira - “Como uma claraboia para dentro do mundo”


            Se fosse possível, numa palavra, caracterizar o último romance de Pedro Guilherme-Moreira a escolhida seria o adjectivo avassalador. O seu Saramaguíada, publicado no passado mês de Setembro pela Poética Edições, faz parte daquele grupo (pequeno) de textos de que falava Proust. Dizia o autor francês que, de quando em vez, surge um escritor original que alicerça o seu texto numa rede de relações significantes novas e inovadoras que interpela os leitores. A leitura destes textos não se compadece com imediatismos e linearidades, e se esse facto pode desanimar é apenas porque sentimos “que le nouvel écrivain est plus agile que nous”.

A afirmação proferida em meados do século passado aplica-se na perfeição ao novo romance de Pedro Guilherme-Moreira. Saramaguíada é uma preciosidade para os amantes da literatura, que nos desafia a entrar num universo mágico, situado fora de um tempo cronológico, fora de um espaço geográfico, todo ele feito de palavras e pensamentos em diálogo, dando amplo e total sentido às reflexões de Pilar que “sabe que cada palavra é como um lago profundo que contém todo o mistério, todo o encanto e toda a explicação das coisas, mesmos das inexplicáveis” (p. 43).

O título antecipa a centralidade temática da efabulação, enunciando desde logo uma clara e inequívoca referência a um dos nomes maiores da literatura universal, ao único escritor nacional galardoado com o Nobel, José Saramago, indiciando igualmente que outros o acompanham nessa jornada. A magnífica ilustração da capa, da autoria de Vasco Gargalo, confirma-nos a interpretação, ao representar uma imensa estrada povoada por personalidades maiores do mundo da cultura e da literatura que começa em Saramago e termina na angolana Alda Lara, tendo como ponto de destino final Paris, metonimicamente representada pela Tour Eiffel. No entanto, e como adverte o autor num curioso texto intitulado Ordem das coisas que antecede o corpo do texto, neste livro celebra-se “a literatura e as ideias, que são das pessoas, mas não as pessoas em si” (p. 15). Estamos, pois, no mundo do pensamento, “ali todos eram ideias, sonhos ou pensamentos materializados” (p. 65), por isso o herói da narrativa é Esse, a materialização do pensamento de Saramago. É um universo sem fronteiras de tempo ou de lugar, onde as criaturas (ficcionais) dialogam com os seus criadores, onde Esse e O’Neil viajam para Lisboa numa barca conduzido por Confúcio, onde Eça e Esse, em Tormes, acompanhados por Charles Robert Anon (heterónimo infantil de Fernando Pessoa e representado figurativamente por um desenho que reproduz uma fotografia do poeta aos dez anos) discutem o papel social da literatura. Desta breve apresentação, surge como evidência que qualquer apaixonado pelos livros e pela literatura se sente, diante deste romance, como uma criança numa loja de brinquedos, levado num turbilhão de sensações feitas da alegria da descoberta e do entusiasmo da indagação.

Vários elementos concorrem para a originalidade do romance, que nasce antes de mais da incorporação e discussão de obras da literatura universal, pertença de todos nós, que aqui ganham novos significados, abrindo-se a novas perspectivas. No entanto, o exercício de reescrita empreendido não é apenas e só uma apropriação de textos da plêiade de escritores, pensadores, filósofos, poetas, dos mais variados países e de vários tempos, convocada pela efabulação. Com efeito, o leitor é surpreendido pela afirmação da paternidade dos excertos textuais citados (Dom Quixote, de quem Esse recebe uma missão secreta, refere-se ao seu criador como “o pai Cervantes” p. 68), que surgem em discurso directo, pela voz dos seus autores que assumem, por essa via, a condição de personagens ficcionais. Por outro lado, constitui ainda marca de originalidade a série de elementos paratextuais que ladeiam o corpo do texto, com particular destaque para a “Tábua de Personagens e Lugares”, em que ao traço da palavra escrita, desafiante e penteada por um humor fino e desconcertante se alia o traço elegante e bem-humorado das ilustrações de Vasco Gargalo.

Na viagem por esta saramaguíada, viagem repleta de desafios e estranhezas, somos conduzidos por uma curiosa personagem que assume a condução da narração, mas igualmente a construção da efabulação. Vai inscrevendo no entrecho comentários, explicitações de opções diegéticas, interpelações aos leitores, convocando-os, desse modo, para um surpreendente e desconcertante jogo de interpretação e reconfiguração em busca da intencionalidade dos textos, procurando desvendar aquilo que Ricoeur designou como a “transcendência na imanência, que se alicerça na construção de redes de afinadas textuais, não só com os autores que explicitamente são convocados por Pedro Guilherme-Moreira, mas também com todos aqueles que o leitor vai encontrando nos trilhos significantes de que o texto é feito. A leitura de um livro é por excelência um acto individual, um constructo, para o qual cada leitor leva as memórias de outros textos que com este põe em diálogo. Constituindo-se com espaço de cruzamento de escritas e de leituras anteriores, o texto oferece aos seus leitores uma multiplicidade de relações e significações das quais destacaria duas em particular: Utopia de Thomas More e Huis Clos de Jean Paul Sartre (ficam em aberto a concretização desses diálogos e o prazer da descoberta).

            As grandes obras, aquelas que perdurarão na mente dos leitores, são as que incomodam, porque abalam certezas, desarrumam pensamentos, desconstroem convenções. Tudo isto sucede com a leitura de Saramaguíada de Pedro Guilherme-Moreira, um livro surpreendente e belo, “como uma claraboia para dentro do mundo”.


PG-M 2017
foto de uma recensão da Professora Universitária Agripina Vieira no Jornal de Letras de Novembro de 2017

2017-11-13

Jim Carrey e o princípio e o fim do mundo

Jim Carrey, Lobo Antunes, Rodrigo Amarante, Eduardo Lourenço, George Steiner, Shakespeare, Cervantes, Saramago, Robin Williams, vida e morte, panteão, palhaços, gritaria em rede social, depressão, suicídio, grande e pequena arte, existência ou inexistência da literatura, Irene, milagre seria não ver no amor essa flor perene.
Tenho o privilégio de ser chamado a escolas e a comunidades de leitores para justificar o meu direito a abrir a boca na contemporaneidade, onde só uma ficção benevolente pode atribuir-nos mérito e demérito artístico. Na verdade, nenhum artista - está visto que eu vejo os escritores como artistas - ou julgador de artistas pode realmente saber se é importante ou não. Nem para o seu tempo, nem para o fim ou princípio dos tempos. Todos, claro, aspiram a isso.
Um das coisas notáveis que Jim Carrey disse ao programa 60 Minutes foi: "Eu quero ser o melhor actor que alguma vez existiu, mas não tenho de ser."
Porque é que eu sigo Jim Carrey, apesar de o resumo contemporâneo deste génio ser o estigma americano dos processos interpostos pela família e pelo último marido da namorada de Jim que suicidou? Forneceu-lhe drogas que a levaram ao suicídio e transmitiu-lhe três doenças venéreas? É isto que agora o define para o mundo frívolo.

Porque o Jim Carrey disse uma vez, e tem-no repetido pelos tempos, "descobri que a minha missão no mundo era inspirar os outros, ajudá-los a descobrir o melhor de si mesmos".
Para mim, o ano sempre começou em Setembro, e cada Setembro repenso a minha relevância no mundo, e a dúvida anda entre regressar à caverna ou exibir-me com as vestes sociais que me podem tornar suportável.

Até aqui, o meu único foco de intervenção pública foi provar que são os outros, não eu, que importam. Que o escritor não existe por si, mas pelo leitor. Que, mesmo que não seja lido, todo o livro é um compromisso entre os algoritmos indecifráveis da arte literária antes de serem sintetizados e passados ao papel e o que fica disso para poder ser lido. Um livro não tem de ser fácil, mas tem de ter em si, pelo menos, a possibilidade de ser lido. A comoção de ter pela frente pessoas que, com mais ou menos vontade, estão ali para me escutar, é sempre enorme. Sinto uma reverência que, se não for domada e convertida, pode até ser inibitória. Em momento algum me sinto importante. Gosto até de brincar com a aparência de importância que os escritores precisam de ter para se distinguir da massa informe ou disforme dada ao prelo pelas empresas de venda de sonhos ou projectos dos que sonham ser escritores. Todas as artes, hoje, são susceptíveis de serem imitadas e de terem edições que o público não consegue, imediatamente, distinguir se é autêntico ou fruto do ego de pseudo-artistas que pagaram para ser vistos, não para ver. Pseudo-artistas que nunca ficam à escuta, única forma de apanhar a matéria suprema da arte algures no universo e, podendo ou sabendo, dar-lhe uma forma, boa ou má, de bom ou mau gosto, desta ou daquela corrente, feia ou bonita, não importa. Importa apenas que seja genuína criação, ainda que falhada.

Também aprendi com o Jim Carrey que devemos falhar bem e controladamente. Que o momento incompreensível em que eu decido cantar o Lilac Wine na apresentação de um livro e as lágrimas na garganta me darem cabo da pouca voz que ainda estava disponível não foi um fracasso total. Afinal, eu estava a chorar por dentro por uma leitora tetraplégica cujo exemplo sempre me emocionou. Se eu fosse perfeito em tudo, nunca conseguiria criar empatia com os leitores, só fãs loucos e irracionais.

O desfile de nomes ao princípio é só um exemplo dos que tenho ouvido de forma crua e acrítica, primeiro, para poder formar uma opinião ou me tornar melhor artista. Não pessoa, artista.

Esta moda no "#notme" não me comove. Sabem porquê? Porque eu sempre estive na primeira linha de protecção dos fracos ou enfraquecidos temporariamente, por condição social, religião, idade ou género. Aliás, cometo reiteradamente o erro de me aproximar dos fracos e de lhes dar protecção, mesmo sem que isso me seja pedido. Conheço bem a linha fina entre assédio e sedução. Não existe, na condição humana, um único movimento de sedução de qualidade que não pise linhas. Escrevi várias vezes sobre isso. Testei limites em ambas as profissões que tenho exercido, advogado e escritor. Percebi a hipocrisia e o poder do sexo. O poder destrutivo do egocentrismo e do egoísmo, mas também de quem o usa para prejudicar ou mesmo destruir terceiros em situações de fronteira. Hoje em dia é muito fácil e hipócrita confundir saúde com doença, no que ao sexo diz respeito. Mas, na verdade, uma pessoa de princípios nunca cede e, se acaso comete um erro, sabe imediatamente reconhecê-lo. Há puritanismos (muito) mais perigosos do que libertinagens.

Chegados aqui, nunca retirarão a Cervantes o ceptro de autor da maior obra de todos os tempos (por subjectivo que seja, já houve várias eleições nesse sentido de pares com autoridade), mesmo que ele fosse o maior criminoso de todos os tempos. Aliás, o que o tempo faz aos maiores criminosos de todos os tempos é dar-lhes um sentido e um significado histórico que serve aos vindouros para se protegerem. E como nunca retirarão o ceptro a Cervantes, também não retirarão os prémios e o brilhantismo ao Kevin Spacey nem o génio ao Salinger, apesar do pobre comportamento perante a Joyce Maynard.

Da mesma forma, transcende a minha opinião ou sentimento pessoal o jantar do Panteão. A única coisa que isso me serviu foi para perceber que prefiro uma boa dúzia de génios que jantou no Panteão há dias e que tocará este mundo realmente para a frente do que os medíocres dos políticos que responderam presente à gritaria das redes sociais. E vocês, com quem é que contam para o futuro? Com o Paddy Cosgrave ou com o António Costa, que até já lá tinha feito as suas jantas?

Jim Carrey é - por razão nenhuma quanto a ele próprio - a partir desta semana, não apenas mais um ídolo ou mais um génio que cultivo, até porque, como ele explicou na célebre entrevista em que descompõe uma repórter de passadeira vermelha na Fashion Week (repórter a quem ganhei respeito, porque se aguenta brilhantemente perante um destruidor - mas sempre genial - Jim Carrey), mais vale cultivar personalidades e conteúdos do que ícones, mas o maior génio das artes que exerce.

Vi horas a fio de performances, entrevistas, bem mais do que filmes (porque ele é bem mais genial quando é ele próprio), e regresso sempre ao Commencement Speech que vos deixo no final deste.

Se, entretando, a ligação do vídeo expirar, voltem por favor a procura-lo no youtube e, como tudo o que é muito importante, vejam-no com vagar.

No final, parecer-vos-á claro o mistério do princípio e do fim do mundo.

E restar-vos-á toda a coragem para  o que fica entre os dois.

Tenham uma boa vida.

PG-M 2017
origem da foto

2017-08-05

Entrevistas 2017 - a primeira

A prosa exige muita oficina, muito suor, perseverança e trabalho’

com 1 comentário
Entrevistas > Pedro Guilherme-Moreira em Escritores online

Pedro, quando é que surgiu a tua vontade de escrever ficção e de publicar?
A resposta a esta vai logo na badana do primeiro livro, “A manhã do mundo”. A professora da 2ª classe pediu-nos para escrever uma fábula e eu transformei-a numa formiga. Era o que me apetecia fazer, mas pensava que estava a ter um atrevimento que seria severamente punido. Eu era bem comportado. Tinha tido dificuldades na primeira classe por excesso de medo. A professora Laura tirou-me o medo todo quando me ensinou a fazer contas de dividir, no primeiro dia, e me deu a nota máxima e elogios por ter feito a loucura de a transformar em formiga. A partir desse dia, achei que tudo era possível. A literatura faz isso. Transforma-nos em gajos perigosos. Mais valia ser medricas.
Onde é que, por norma, encontras a inspiração para escrever as tuas obras?
Temos de distinguir a poesia da prosa e do teatro, para falar só em três géneros. A poesia já lá está, é nossa responsabilidade reduzirmo-nos à mesma formiga da fábula para transportar a poesia e a mostrar ao mundo. Nem sempre o fazemos bem. Quando nos apagamos completamente, mesmo que sejamos o objecto do poema, um ou dois de nós chega lá, de vez em quando – a poesia é talvez o processo biológico mais próximo da inspiração. A prosa exige muita oficina, muito suor, perseverança, trabalho – eu quase só vejo inspiração no primeiro acto, aquele que nos obriga a parar tudo para registarmos a possibilidade de um novo livro. Finalmente, o teatro: nunca tive tanto prazer como quando escrevi para teatro. Estava lá, no palco, e tudo aconteceu ao mesmo tempo nas teclas e no papel. Uma sensação maravilhosa e terrível, ao mesmo tempo. Mas neste gajo perigoso há um denominador comum, seja na literatura, seja num jogo de voleibol: vísceras.
Quais as temáticas mais presentes na tua escrita?
Estava preparado para ser evasivo, como nos ensinou Bukowski, mas na verdade tenho-as: levar-nos para as margens da natureza e da condição humana. Tenho quase um desespero de nos observar lá, onde nenhuma minudência pode importar, de perceber o que realmente importa. Como fiz nas torres gémeas. Descrevi os suicidas e depois tirei-lhes a carne e vesti-me neles, para que sentíssemos o mesmo que todos os três mil mortos. Eu e todos os leitores. No Livro sem ninguém tirei-nos do mundo e li-nos lá. Um livro sem personagens grita gente por todos os lados. Noutros, inéditos, reverti as metamorfoses. No novo, “Saramaguíada (a invenção de Pilar)”, obriguei a ideia de Saramago a fazer as vezes de Quixote e levei-o de barca aos limites da literatura e do próprio amor, que são coisas diferentes, embora aquela contenha este e este não contenha aquela.
Que aspetos destacarias relativamente ao livro que publicas este ano, o terceiro, “Saramaguíada”?
A Pilar chega a Lisboa para conhecer fisicamente o Saramago a 14 de Junho de 1986, estávamos nós a aturar Saltillo e o México 86. É o Diassaramago, que se celebrou ontem. Nesse dia, levámos no corpo de Marrocos, 3-1, um golo do Diamantino. E nós, eu e vocês, não vamos dar descanso à ideia de Saramago, que renasce para isto, como renasce a cada leitura dos seus próprios livros. Mostro a Pilar pré-1986. Achei que devia. A Pilar faz parte da nossa literatura, é uma realidade, não podemos fingir que não, não devemos fingir que não. Não mostro a vida comum deles. Mostro-os depois da morte dele. Cruzo o mundo ideal com o mundo real de uma forma muito prosaica e simples, desde que ninguém se agarre ao tempo. O tempo, sendo tudo, importa pouco para as ideias, que, como sabemos, vão, voltam, são recicladas desde as cavernas – às vezes são relativamente novas, mas nunca são novas, ao contrário dos livros – claro que ainda não se escreveu tudo e os livros são mesmo novos, quando são. As ideias sobrevivem no tempo, mas também apesar do tempo. Assim, levo o Saramago a conhecer o Eça e a Maria Amália Vaz de Carvalho por motivos frívolos, que é o que tantas vezes fazemos no “meio”. Dou-lhe uma missão banal. Obrigo-o a aturar o jovem Pessoa e o seu cão Shadow e a levá-los nessa missão. O jovem Pessoa apaixona-se pela Annabel, do Lolita, do Nabokov, o que se torna um problema, porque Nabokov determinou que Annabel morresse de Tifo em Corfu. O jovem Pessoa sabe disso e quer evitá-lo a todo o custo. Em Corfu, ou numa espécie de Corfu, chamada Ilha dos Jornalistas sem Cabeça (onde reflicto sobre jornalismo e sigo os últimos passos do jornalista mártir brasileiro Vladmir Herzog) Saramago é julgado em público e defendido pelo Padre António Vieira. Encontra-se com O’Neill em Lisboa e com Virginia e Leonard Woolf numa ilha parecida com Amalfi, assim como com muitos outros escritores brasileiros, portugueses, espanhóis. Levo-o à Tormes de Eça comer o célebre arroz de favas. Encontra-se com Voltaire em Paris e com a mãe de Pessoa em Davos, numa volta de Montanha Mágica. E com vários vultos nas barcaças que o levam para aqui e para ali. Enfim, o livro nem é grande (cerca de 320 páginas), mas para mim tem um certo infinito, como aquelas pistas de aeroporto infinitas que querem agora construir, porque são circulares. Ah, e temos uma personagem arrepiante (temos várias, mas esta é principal): a própria Leni Riefenstahl, a cineasta do Hitler.
Quais os momentos mais marcantes no teu percurso enquanto escritor?
Encontrar os editores e os leitores de todas as idades. A emoção de ver um editor de grande qualidade mostrar-nos que a grande merda que fizemos, quando pensávamos (não pensamos todos) em obras maestras, como dizem os espanhóis. A Pedreira, que me deu a mão para lá deste muro alto da edição, apesar de termos feitios e ideias muito diferentes (creio que nos estimamos e respeitamos muitíssimo). A Virgínia do Carmo, pela humildade e pela coragem. E tantos leitores, dos 11 aos 97. As visitas às escolas são um profundo privilégio, apesar de precisarem de uma afinação de egos e métodos pedagógicos. Todo o ensino do português precisa. Não se ensina a ler nem a escrever, que é o fundamental. Exagera-se em grelhas numa “ciência” de máxima subjectividade. Só os grandes professores de português nos salvam.
O que é, para ti, um bom livro? 
Não me meto na definição universal do bom livro, que não existe. Para mim é fácil ver um mau livro, mas aprendi que quem os escreve, se tiver a humildade de os destruir e avançar, pode vir a escrever bem. Quase sempre, os livros mal escritos são escritos por maus leitores. Mas há bons leitores que não conseguem encontrar a voz e a técnica. A pressa em publicar não serve de nada. Mais vale ser injustamente recusado do que auto-publicar sem crivo e a ciência do editor. Isto era um mau livro. Um bom livro, para mim, só para mim, é um livro que me pendura pelos cueiros, que me faz praguejar do quão bom é, que me faz desesperar por não conseguir “resolver” aquela voz, que quero sempre desesperadamente plagiar para aprender a fazer parecido. É, cada vez mais, o livro que me mostra oficina. Ouvi dizer, um destes dias, já não sei quem nem sobre quem, que o bom livro e o bom escritor deixam as costuras à vista. Nem que tenham de as esconder no processo.
E o que faz de um escritor um bom escritor?
Ser simples, não emitir opiniões como sentenças erga omnes e deixar-se de merdas. Lutar pelos livros todos, não só pelos seus. Ser humilde perante o leitor e o editor. Colocar o leitor no topo da pirâmide. Saber parar e questionar. Não atacar publicamente os pares, mas criticá-los e pensá-los muito em privado e olhos nos olhos ou até nas costas, se ele não estiver por ali, desde que tenha a decência de, na primeira oportunidade, dizer na frente o que pensa. Não ser subserviente ao statu quo vazio, mas respeitar os decanos, a sabedoria e a erudição, lutando por uma nova. E, se, no final de tudo, for uma reles pessoa, que se meta em casa ou no escritório e se dedique obcecadamente à literatura, para não magoar mais ninguém e fazer o bem aos vindouros, poupando os contemporâneos. Se for uma reles pessoa, por favor não escreva no facebook.
Para terminar, gostaríamos que nos indicasses os teus 7 escritores de eleição e os 7 livros que, indubitavelmente, recomendaria.
Gosto muito de muitos portugueses, mas vou optar por não indicar nenhum. Porque os clássicos não precisam e porque não é por mim que os novos terão mais leitores. Tenho, no entanto, de dizer duas coisas: o Pessoa é omnívoro e deve ser consumido com tento. Contra mim falo, porque o tenho em todo o (novo) livro, embora jovem, criança. E deixem de opinar sobre o feitio da Ana Teresa Pereira como se fosse um ser humano, porque ela também já é um mito. O maior mito britânico português. Portanto, quanto ao restante, Proust – Recherche, tem de ser. Bukowski também, qualquer um. Bachelard e Platão (e este inclui Sócrates, como sabemos, porque Sócrates não escreveu uma linha), idem. Colette, que não é só para gajas (essa era um das parvoíces), Chéri. Qualquer poetisa que não chame a si própria poeta vale a pena, só por isso, embora não deva ser excluída das escolhas só porque usa um adjectivo de género masculino sobre si própria. Os sábios de rua de todas as aldeias do mundo, e que cada vez escutamos menos, com a excepção do Fernando Alves. Insisto na Bíblia, no Dom Quixote, na Karen (os meus são íntimos, digo depois). La arte de quedarse solo, de García Martín. Se isto é um homem, Primo Levi. Já chega. Obrigado!

2017-06-12

Somos todos (“verdadeiramente”) Bukowski ou como ser cínico e amar

 Eu não podia estar aqui. Não devia estar aqui agora, na "suite presidencial" de um hotel de asco pegado a um mall gigantesco nos arredores de Nova Iorque. Não, não, já perdi a frase. O Bukowski teria dito o lugar exacto, a rua, o beco, e não ia escolher um hampton qualquer, nem pensar em escolher o fio de baba tóxico de um hampton qualquer, ia para o outro lado, para sul, para o meio do barulho e da fealdade, das sobras da américa, onde dissecaria de forma meticulosa o ciclo de vida das lagartas nojentas que penetram a grande maçã até à inconsciência. Aqui, nesta merda de lugar, ainda se fuma e eu estipulo que sou advogado num escritório de advogados em Manhattan que ocupa dois edifícios e tem mais população do que esta parvónia de onde eu não consigo sair desde puto sob o estiolado pretexto das raízes, mais uma mentira urbana que me levará depressa à morte. Estou farto de gastar dinheiro, mas ainda não estou suficientemente farto de o ganhar para os mandar a todos à merda, o que eu já deveria ter feito. Era o meu máximo objectivo ao dobrar os cinquenta – ainda vivo aqui para os mandar a todos à merda antes de me afeiçoar à lapidação da ilha mais desejada e sobrevalorizada do mundo.


Estou a dispersar. Na verdade, só abri este texto para declarar a minha amizade a duas personagens ficcionais que estou a criar para o meu último livro, aquele que vou deixar inacabado, mas ainda não afinei o cinismo para o dizer de uma forma suportável para mim próprio. Se não é para mim próprio, para eles pode ser fatal. São um homem e uma mulher.


Nunca detestei o homem. Só não gostava da personagem que ele tinha composto em público. E é irónico eu dizer isto, porque, no regresso de carro de um festival literário no México, tínhamos mil quilómetros pela frente e não íamos estar calados como no avião entre Nova Iorque e Los Angeles, ele disse-me que a minha personagem pública era má e que eu tinha de fazer alguma coisa para mudar isso. Hoje eu sei que o que ele queria dizer é que eu não era suficientemente cínico e que um ser humano, qualquer ser humano em qualquer ofício, não pode aparecer aos outros como uma pessoa sensível e virtuosa, rodeada de amigos, principalmente de amigas, portanto um incorrigível onanista. O que aconteceu depois foi assombroso. Embora eu tenha a certeza de que, ainda hoje, ele não gosta verdadeiramente de mim, conseguiu que eu gostasse verdadeiramente dele. Passei a observá-lo com honestidade e lealdade, o que não fazia antes. Nunca lhe fiz mal, nunca disse mal dele a ninguém, excepto à minha mulher – mas isso não conta, como sabemos – , mas não queria saber dele. Quando nos informaram da editora que íamos estar juntos no México, e, pior, íamos juntos num avião e num carro e que, provavelmente, até dormiríamos juntos, por contenção de custos e partilha de quartos em hotéis de asco como aquele onde escrevo isto, creio que o desespero e a ansiedade tomou conta de ambos. Para lá ainda foi. Para cá, ele teve de falar. Reflecti sinceramente no que ele me dissera, disse-lhe que ele não tinha razão, mas tinha. Não a tinha toda, mas tinha metade dela, e ter metade da razão é tê-la toda, por não haver, no nosso século, tempo nem condição para conceitos muito claros, muito menos precisos. Eu, por ser suficientemente burro para me achar inteligente, adequei a minha existência pública a metade dos ditames do rapaz. Portanto, a metade da razão. O que é curioso é que ele próprio se encheu, quase até ao desespero, de ser um cínico urbano e declarou aos seus amigos radicais que ia abandonar a seita. Abandonou a seita e abandonou Nova Iorque e foi viver com a mulher para a ilha onde tinha nascido, uma ilha que ninguém conhece em frente ao farol de Montauk, só visível do céu durante dias límpidos de verão, que em Montauk são dois ou nenhum. Aí, a infinita curiosidade dele, que, quando misturada com cinismo, era insegurança descarnada, perdeu cinismo e ganhou paciência e sabedoria. Então ele começou a crescer. E crescer até um ponto em que, mesmo que seja pequeno, como eu, já me parece maior do que os nossos pares. Reconhecido, nunca deixei de lho dizer, passo a passo, o que ia vendo. Hoje ele até consegue ver em si próprio que a forma bem articulada como leva todas as suas intervenções sobre qualquer assunto é insegurança e timidez. Nas entrevistas, quase não lhe fazem perguntas, ou, as que fazem, já foram antecipadas por ele. A questão é que esse discurso articulado vai melhorando cada ano que passa. Se ele é humilde ao ponto de preparar e pensar aquilo que vai dizer e depois chega lá e diz tudo, ao ponto de não conseguir encaixar o humor e as indirectas como antigamente, na altura em que a vida dele era apenas humor e indirectas, tornou-se talvez o primeiro ser humano em que o decesso de humor, sendo uma limitação, não o tornou pior pessoa, pelo contrário. É simples e humilde, deixa as folhas em branco para nelas escreverem. E eu escrevo hoje essa espécie de declaração de amor para lhe dizer o que, sei hoje, ainda lhe falta. Foi claro na última intervenção pública que eu lhe ouvi: falta-lhe voltar a ser ilhéu. No conteúdo, no que mostra vindo de dentro, todo ele é genuíno, ainda que pensado e preparado, mas ainda fala como um novaiorquino afectado de Manhattan. Manhattan perdeu a condição de ilha, porque é a praça do centro do mundo, o mais ligado de todos os territórios. Mas ele é ilhéu. Nasceu e vive numa ilha cuja identidade hoje assume e promove. Perderá, um dia, o tom afectado de Manhattan. Nesse dia, será o mais perfeito de todos os imperfeitos pares. E eu torço por ele. Do fundo do coração onde o deixei chegar, ainda que eu não esteja no dele. Não faz mal. Nós, os falsos cínicos, os que precisam da voz de Bukowski para dizerem as coisas mais bonitas
como as cidades as comem , sempre quisemos o bem dos outros mais do que o nosso.


Já para ela, escrevo porque ela falou da intimidade literária numa entrevista e há no presente – e do presente ninguém fala – ilusões de aproximação e regressão, decisões de erradicação e dispensa de pessoas e grupos e mesmo de vidas inteiras. Escrevo para todas elas, as mulheres da minha vida, e há-as a chegar todos os dias, embora cada vez menos, mas para isso decidi reescrever à luz de Bukowski o meu único livro que é verdadeiramente auto-biográfico – antes disso, vou alinhar em grupos de sevícia a autores ou artistas que voltem a dizer publicamente que todos os livros são auto-biográficos, podemos arrancar-lhes os pêlos do cu a frio, por exemplo, a eles e a todos os assassinos da palavra poetisa: ainda tolerava que chamassem poetas às poetisas nos cem anos que se seguiram às poetisas menores, às meninas dos prostíbulos e dos versinhos, mas nenhuma mulher que escreve poemas decentes precisa já do desplante de lhe negarem – ou de negar a si própria – a palavra feminina para o que ela faz ou diz: apenas poemas. Ainda que um poema lhe possa conceder a vida eterna, não, nunca uma mulher de corpo inteiro será poeta. Para tal, passo a oferecer o rascunho de um poema definitivo que pode substituir a sevícia dos pêlos arrancados a frio. Mais tarde o arrumarei por versinhos:

poeta, assassina, poetisa, e também temos sem vírgulas

não existe uma só poeta mas existe uma só Sophia as poetas (que não existem) chamam-se a si próprias isso (porque a Sophia quis ser poeta e elas querem ser Sophias – mas não são) (ou então querem professar Sophia e ela não quer ser professada) (ou então querem divinizá-la e ela nunca o consentiria) mas não há poeta nenhuma depois de Sophia não há poeta nenhuma depois de Sophia não há poeta nenhuma depois de Sophia e como é óbvio poeta assassina poetisa e também temos com vírgulas os tempos mudaram não sejam ridículas em meio século nem a puta do verbete com dois géneros conseguiram só mania só manias só tiques (poeta nenhuma)

Finalmente, a ela, não à Sophia, mas à mulher a quem hoje dirijo uma espécie de declaração de amor, se a amizade for isso, digo-lhe o seguinte:
Muito antes de teres a coragem de fugir para Paris, muito antes de seres despedida de forma crua em Nova Iorque, onde dois anos antes te tinham dito que serias a obreira de um suplemento literário que seria mítico pelos anos vindouros, eu ouvi-te. Ouvi-te sem programa e sem futuro. Ouvi-te no presente. Nunca te penalizei com o corpo. Nunca te exigi nada, muito menos tu a mim. E sabia que, para um mero café, terias de ter muita coragem. Neste presente não é fácil deixar o conforto das teclas, que podem bastar para se dizerem coisas substanciais, para o desconforto de um espaço com pó e máquinas de moer grão e cheiros, os nossos cheiros, a preocupação de tomar pastilhas para o hálito ou escolher o perfume certo, a esperança de que os nossos defeitos não esmaguem a primeira impressão, sei isso tudo. Mas entre nós aconteceu tudo ao contrário: não houve qualquer intimidade ou ilusão literária. Eu limitei-me ser ostensivo quando assumi que “escritor” era um adjectivo meu desde sempre, que não precisava de autorização dos que se prostituem, verdadeiramente, há décadas, para terem algum domínio sobre o meio literário autista e minúsculo, um meio feito de elementos, que, apanhados a sós e sem lhes ser exigido que vomitem sentenças, até são suportáveis, até escrevem, mas, apanhados em pequenos grupos e previamente amarrados em conjunto como vitelos para Rodeos em que eles pensam que são os cowboys, e não os vitelos, coitados, são insuportáveis e abjetos. E, quando fui ostensivo, ouvi. Ouvi os abismos, as ânsias, pressenti a pessoa valorosa que és e que estava, não perante mim, mas do outro lado da linha, a tentar ser o mais verdadeira que conseguia apenas com teclas, e eu, apesar de acreditar cada vez menos nas teclas, sabia que as tuas teclas eras tu. Cada vez que vejo o teu trabalho, cada vez que te ouço, sinto um orgulho quase paternal, e este orgulho paternal não tem nada de paternalismo, pelo contrário, é uma das virtudes humanas, que há quem chame mais genericamente de empatia, mas é mais do que isso, vai mais longe, é verdadeiramente isento de corpo e, no entanto, embora não haja cobranças entre amigos, pode haver dívidas incobráveis, e a tua única dívida perante mim é física, é um café em que deixamos que o silêncio se habitue à nossa presença, em que tentamos perceber se é possível estarmos calados ao lado um do outro sem dizer absolutamente nada e mesmo assim sermos importantes um para o outro e ser importante continuarmos ali, calados. Pelos anos fora, tomei várias decisões, sendo uma delas deixar que a ilusão da amizade me tomasse e deixar que o seu contrário, exactamente o seu contrário, a ilusão da estranheza, vencesse. O tempo, sempre o tempo, diz-me que venceu a ilusão da amizade, ao ponto de ter passado a ser real. Esse café? Não importa, pode ser às portas da morte de um de nós. Convém apenas que aconteça para que a falta dele não passe a desventura. E tu saibas que, quando penso ou digo que gosto muito de ti, não estou a usar a leveza e a facilidade das teclas e das existências virtuais.

Obrigado, poeta. Obrigada, poetisa. Que provavelmente não são poeta nem poetisa. Mas serão amigos no México, em Nova Iorque, em Paris. Poeta, poeta, é Sophia, e não há poeta nenhuma depois de Sophia.

PG-M 2017

2017-05-13

Já ganhámos

 Nota prévia: este artigo foi escrito na manhã da vitória, mas, sinceramente, não era difícil prevê-la. O mundo inteiro apontava para ela. Junto no final o vídeo da semi-final do Eurofestival, com aquela que, das seis interpretações oficiais (3 domésticas e 3 Eurovisão, incluindo as da vitória) foi a minha preferida;

Sabem o que se usa nas redes sociais? Escrever assim amanhã, quando o Salvador encher as capas de todas as revistas e jornais, não por ser um doente cardíaco bissexual*, mas por ter ganho o Festival da Eurovisão 2017, em Kiev, "eu, no dia da semi-final doméstica, disse logo que este rapaz e esta música eram do outro mundo". Ou seja, é por minha causa que ele vai ganhar. Não é. Mas vai ganhar. Na verdade, já ganhou. E é curioso que a minha admiração tenha deixado de se dirigir ao compatriota e à bandeira portuguesa, que certamente serão uma parte do gozo, da emoção e do orgulho. A minha admiração dirige-se à universalidade e beleza da canção e à universalidade e singularidade (parece contradição, mas não é) do próprio Salvador. Creio, como se rezasse uma prece, no que vou dizer: a Luísa Sobral escreveu uma das melhores canções dos últimos séculos, não da década, não deste século, não deste e do anterior, mas de sempre. Tenho dito que é uma espécie de "Yesterday", mas é muito mais bonita. Não está em causa o mérito da Luísa, mas calhou. A conjugação das estrelas, do tempo, do momento, das redes sociais e a singularidade do intérprete fazem o resto. Também não acho que se devam preocupar com o legítimo direito ao cinismo e à fuga à unanimidade. Deixem-nos, coitados, porque já lhes basta sentirem-se sempre infelizes e não serem capazes de tomar o imenso banho de luz que esta canção dá cada vez que é cantada e não só pelo Salvador - eu já vi todas as sensibilidades rendidas, desde o bêbado de tasco até aos domésticos, dos agricultores às sopranos, mesmo os que, a princípio, aderiram a outras músicas e estranhavam o histrionismo ou a expressividade ou a singularidade do Salvador. Na verdade, essa "diferença" é só a marca do inérprete, é um factor mais na parte menor: a liderança de casas de apostas e a vitória num festival. Mas a canção está acima do Salvador e da Luísa, está já pelo mundo inteiro. A letra, em toda a sua simplicidade, agrega milhares de páginas de filósofos. Esta coisa de o amor ser tão elevado e intenso que chega para os dois e dispensar um deles de o sentir é, afinal, a história de séculos de mulheres, principalmente de mulheres, esses seres superiores. Não admira que tenha sido escrito por uma. Depois da semi-final doméstica, a canção já era trauteada nos carros a caminho do trabalho. Depois de ter ganho o Festival da Canção e ser o legítimo representante de Portugal na Eurovisão, começou a ser cantada, imitada, mimetizada, pela Europa toda, com Espanha
como a principal entusiasta, porque, afinal, com a excepção de "devagarinho" e "pelo", as palavras são quase iguais em castelhano. A orquestração é magnífica e fixa logo dois terços dos ouvintes na abertura. Depois de ter actuado na semi-final da Eurovisão, então, não há limites. A canção é pedida na abertura de bailes de casamento em todo o mundo, é cantada pelos ucranianos em
português - sim, pelos vistos quase todos a querem cantar no original, e, aqui sim, é um serviço maior à nossa língua -, há já várias covers de altíssima qualidade, da Austrália ao Japão, do Japão aos EUA, que mostram que o mérito é da própria canção, e eu tenho a certeza de que a Luísa fez um clássico de todas as eras, que será interpretado por todos os estilos musicais. O próprio Salvador se encarregou de gravar para um amigo uma versão em flamenco. Vi a irmã e o Salvador nos ensaios gerais e há duas coisas curiosas: o Salvador é melhor intérprete do que a irmã para esta versão - esta é a primeira. A segunda é que, mesmo que o Salvador nunca se repita, fruto da sua alma jazzística, a canção sai sempre bem. Portanto, a Luísa fez uma canção à prova de bala. Durante anos queixámo-nos de que nunca ganharíamos isto porque o sistema estava "feito" para ganharem os países com maior emigração - a nossa não é baixa, mas não é a maior. Na verdade, se essa perversão tem alguma verdade, é o único factor que nos pode tirar a vitória hoje. Mas eu creio que ganharemos e que já ganhámos.
Na verdade, é todo o mundo que ganha, porque é uma das melhores canções de sempre que ganha. Encerro com um pequeno apontamento: bonitos os portugueses, aí sim. Em quase todos os comentários que li no youtube às várias covers e produções caseiras estrangeiras deste "Amar pelos dois", há sempre palavras de gratidão de portugueses.
É aí que somos grandes: chamamos os outros para a nossa celebração. E muitos vêm. Mas, na verdade, o que Portugal hoje leva ao palco é o universo. Esta canção já é do universo. Era bonito que trouxesse o troféu que já ganhou e que será falado pelos séculos adeante.

* dado o elevado número de leitores deste post, o que eu já previa em caso de vitória, voltei a experimentar daquelas reacções azedas dos que tresleram o que aqui foi escrito. Eu abro este post a apontar o dedo àqueles para quem este nosso músico, que ficará na história por todo o sempre, foi apenas vida privada. A esses e aos tiques das redes sociais. Não estou a expressar uma opinião ou a estipular um facto. É evidente que não a tendência sexual do Salvador e a vida privada são apenas fait-divers para vender.  Não dele. Não da essência deste momento notável. Muito menos meus.

Nota póstuma: no dia da nossa primeira vitória na Eurovisão o Benfica foi tetracampeão pela primeira vez e o Papa Francisco I visitou Portugal para o centenário das aparições em Fátima. A cobertura televisiva de Fátima foi de grande qualidade. Quanto ao resto, isto foi o que eu escrevi uma hora depois da vitória: "Tenho pena que o Salvador não tenha ganho num ano em que o FCP fosse campeão, para eu mandar à merda certas televisões que anunciam em rodapé, sem tirar as imagens dos Aliados (seriam os Aliados) do ecrã, uma vitória histórica e emocionante de pelo menos três gerações de portugueses que viveram isto ano a ano e fracasso a fracasso, com músicos tão bons ou melhores, e não pensarem que era decesso de poder de encaixe. Não aceito um certo jornalismo e uma certa falta de visão. Eu estava num shopping com as televisões todas a dar a vitória no futebol e nenhuma sintonizada na RTP1, mas quando foi certa a nossa primeira vitória na Eurovisão foi um bruá belíssimo pelos pisos todos. Graças aos telemóveis e às apps que tanto criticamos. Eu sei que este país vai saber celebrar isto, mas tenho pena que não haja coragem nas televisões que não transmitiram o festival para afrontar esta miséria da cultura futebolística por um momento tão belo. Subitamente, como ele próprio disse, ganha o que importa, ganha o que é, não o que parece. Se o FCP tivesse sido campeão, eu queria lá saber. E que diferença faria uma noite de glória da música portuguesa em três semanas de festejos ciclicamente repetidos? Ah, eu sei. É o dinheiro dos anunciantes, os que pagam tudo, mesmo os empregos. Vendamos tudo ao desbarato, pois."

 

PG-M 2017
fontes das fotos 1 2 3

2017-03-26

Sónia Braga é nossa

Declaração de amor e de interesses: escrevo sobre a Sónia Braga que foi doada a Portugal pelo foral da Gabriela. Escrevo, pois, em interesse próprio. Ainda que Sónia Braga seja respeitada dos dois lados do Atlântico, só em Portugal é venerada. Se forem pelas ruas de qualquer cidade ou aldeia portuguesa e baterem às portas das casas perguntando aos homens se deixariam tudo para beijar chão que ela pisasse, não há um único português que diga que não, a não ser que ainda seja tuga. Sim, porque o português deixou ser tuga, esse diminutivo inventado no Brasil e usado, ao longo dos tempos, e simultaneamente, com as propriedades do amor e do carinho, mas também da sobranceria e da ignorância, pois, entre outras razões, o português deixou de ser tuga quando a Gabriela nos entrou nas casas. A Gabriela garantiu-nos, finalmente, a liberdade conquistada em Abril e reforçada e temperada em Novembro. Só nesse dia o português ficou livre, deixou de ver apenas rectas e ângulos rectos e passou a ver morenas açucaradas. Era uma segunda-feira, 16 de Maio de 1977, três escassos dias depois do 13 de Maio, em Fátima, três escassos anos depois da revolução. E, apesar da curva e do corpo da morena, do cheiro tropical das imagens e da pouca roupa da Gabriela, foram os avôs e avós de Portugal os primeiros a levantar a mão para que se fizesse silêncio e nada fosse perdido, passando pelos deputados que não deliberavam ou votavam durante a novela, até ao épico último episódio, numa quarta-feira, 16 de Novembro de 1977, que deixou Portugal de ressaca. O Brasil tinha uma história antes de Gabriela. O Portugal moderno não. Daí que Sónia Braga seja nossa e não se fale mais no assunto. 
Vem isto a propósito da Sónia Braga a beirar os 70 anos que protagoniza o pujante filme Aquarius, de 2016,  e que é um justa consagração. Quando ela amarra o cabelo e deixa ver a parte de trás do pescoço, é ainda a menina de há quarenta anos. Aliás, ela é a menina de há quarenta anos em tudo, não só na parte de trás do pescoço, e não se fala mais nisso. A forma como se move, a forma como nos olha naquele olhar castanho-nogal que o sol do Recife inflama. Não há um único pormenor em Sónia Braga que denote que o tempo passou, e seria pérfido quem viesse lembrar algum detalhe irrelevante. Quando ela pega nos mesmo vinis - dos Queen, do Roberto Carlos, do John Lenon, do Gilberto Gil - que nós cutivámos, sabemos que este é o culto perfeito e definitivo. Por mim, deixo a passageira afirmação de que aqui está a eternidade dela, isso e o remate de um mito, que Portugal bem merecia - finalmente houve um realizador à altura para nos dar isto, que devia ser obrigatório para a nossa geração e para a anterior, a passageira afirmação de que "Aquarius" é um grandíssimo e imprescindível filme que nos vinga a alma no tempo do passado recente e no presente, glorificando Sónia Braga pela eternidade como a cena de abertura do filme da Gabriela, com que encerro este, e depois da qual nos poderíamos encomendar ao criador. E a menos passageira afirmação de que a nudez da Gabriela não é menor do que a de Clara, à porta dos setenta, e nós desejamos sem culpa a mulher que nos fez homens da mesma forma que há quarenta anos, e todos nós beijaríamos hoje e para todo o sempre o chão que Sónia Braga pisa. Amém.

PG-M 2017

2017-03-03

Marion forever (and ever, and ever, and ever)

Marion perfeita, como nunca. 
Este é um alerta urgente e essencial para cinéfilos, já que de nada vos vale cruzar o imdb com o metacritic, neste caso. Já aqui tenho escrito que eu já era fã da Marion Cotillard antes do merecido óscar por "La Môme" (não foi merecido, foi obrigatório).
Vi-a dispersar-se um bocadinho em Hollywood e em inglês. Mas também a fui vendo reencontrar-se com a grande actriz que é. Bom, não é grande, é maior. Mas nunca tinha visto tudo o que gosto nela, ponto por ponto, luz por luz, sombra por sombra, num só filme. Esse filme é, no original, "Mal de Pierres", que em português ficou com o título lamechas "Um instante de amor", mas é tudo menos isso (não é lamechas, nem o amor, neste filme, pode ser visto como um instante). É um filme completo e até algo inesperado. Acima de tudo, é o Olimpo para Marion, é um festival de Marion, totalmente esquecido pela academia americana, mas amplamente nomeado para os Césares (melhor actriz, claro, mas também a excelente realização de Nicole Garcia, entre outras nomeações), para a Palma d'Ouro, em Cannes, etc, etc.Quando penso que andam aí com La La La para cá, La La La para lá, e filmes como estes se perdem no ruído. Como diria a minha amiga Ana Saramago, com o seu hardcore fofo, La La La o c.! Marion forever, isso pode ser debruado a ouro! Não percam, sim? E depois digam se tenho ou não razão    

Ps: recordo o que escrevi em 2008: 

"Antes que o Óscar te queime a substância querubim de incêndios dourados, Antes que venham os iluminados decidir que a tua excelência não se pode consentir (o que raio é o overacting?), afinal tens toda uma pátria aos pés, e agora o mundo, e eu, este anónimo que teima em ver as estrelas de frente, as do céu não as caídas do cinema, e que desde o minuto um, depois de ter ver possessa de Piaf, aquele minuto em que desembrulhamos o corpo da magia do cinema e nos levantamos do lugar, calcamos as pipocas sobre a alcatifa e declaramos, já com a luz branca do shopping a surgir pela porta

- Magnífico!

Repara que eu nem sequer sabia que tu eras uma menina quando te vi levar "La Môme" até à morte, só podias ser uma actriz francesa consagrada que a selecção de Hollywood não tinha deixado chegar, depois procuro-te e sei que és bonita não complexa como Piaf, és elegante, mesmo olímpica, não mirrada como Piaf, és transparente e não negra como Piaf, vejo o filme de novo e ainda fico pior, mais inquieto, será que o Cinema vai deixar passar este monumento em claro?

Não deixou.

Ganhaste em casa o César, o improvável Bafta na Britânia e agora o universal Óscar, e mais quinze ou dezasseis prémios todos merecidos.

O que fizeste no "La Môme" ("La vie en Rose" em Portugal) é inefável. Tremendo.Não sei para onde vais, Marion, gostava que não fosses a lado nenhum de especial, mas a verdade é que, do ponto de vista divino, já és deusa, e nunca se é deusa cedo demais.Ficas para sempre, gostava apenas que ficasses mais um pouco e não fosses Monroe, Dean, Phoenix ou Ledger.

Hoje fui buscar a minha bisavó Germaine Lechartier, lá acima às memórias de um impreciso noroeste francês, para dar sentido ao meu sangue que fervilha como se fosses cá de casa."

PG-M 2017

2017-01-20

Z4


quandos irrompes
para a pipe
o teu corpo está deitado no cosmos
na posição das galáxias
ao longe
percutem supernovas
e silêncio


PG-M 2017
foto de José Rodrigues