2017-03-26

Sónia Braga é nossa

Declaração de amor e de interesses: escrevo sobre a Sónia Braga que foi doada a Portugal pelo foral da Gabriela. Escrevo, pois, em interesse próprio. Ainda que Sónia Braga seja respeitada dos dois lados do Atlântico, só em Portugal é venerada. Se forem pelas ruas de qualquer cidade ou aldeia portuguesa e baterem às portas das casas perguntando aos homens se deixariam tudo para beijar chão que ela pisasse, não há um único português que diga que não, a não ser que ainda seja tuga. Sim, porque o português deixou ser tuga, esse diminutivo inventado no Brasil e usado, ao longo dos tempos, e simultaneamente, com as propriedades do amor e do carinho, mas também da sobranceria e da ignorância, pois, entre outras razões, o português deixou de ser tuga quando a Gabriela nos entrou nas casas. A Gabriela garantiu-nos, finalmente, a liberdade conquistada em Abril e reforçada e temperada em Novembro. Só nesse dia o português ficou livre, deixou de ver apenas rectas e ângulos rectos e passou a ver morenas açucaradas. Era uma segunda-feira, 16 de Maio de 1977, três escassos dias depois do 13 de Maio, em Fátima, três escassos anos depois da revolução. E, apesar da curva e do corpo da morena, do cheiro tropical das imagens e da pouca roupa da Gabriela, foram os avôs e avós de Portugal os primeiros a levantar a mão para que se fizesse silêncio e nada fosse perdido, passando pelos deputados que não deliberavam ou votavam durante a novela, até ao épico último episódio, numa quarta-feira, 16 de Novembro de 1977, que deixou Portugal de ressaca. O Brasil tinha uma história antes de Gabriela. O Portugal moderno não. Daí que Sónia Braga seja nossa e não se fale mais no assunto. 
Vem isto a propósito da Sónia Braga a beirar os 70 anos que protagoniza o pujante filme Aquarius, de 2016,  e que é um justa consagração. Quando ela amarra o cabelo e deixa ver a parte de trás do pescoço, é ainda a menina de há quarenta anos. Aliás, ela é a menina de há quarenta anos em tudo, não só na parte de trás do pescoço, e não se fala mais nisso. A forma como se move, a forma como nos olha naquele olhar castanho-nogal que o sol do Recife inflama. Não há um único pormenor em Sónia Braga que denote que o tempo passou, e seria pérfido quem viesse lembrar algum detalhe irrelevante. Quando ela pega nos mesmo vinis - dos Queen, do Roberto Carlos, do John Lenon, do Gilberto Gil - que nós cutivámos, sabemos que este é o culto perfeito e definitivo. Por mim, deixo a passageira afirmação de que aqui está a eternidade dela, isso e o remate de um mito, que Portugal bem merecia - finalmente houve um realizador à altura para nos dar isto, que devia ser obrigatório para a nossa geração e para a anterior, a passageira afirmação de que "Aquarius" é um grandíssimo e imprescindível filme que nos vinga a alma no tempo do passado recente e no presente, glorificando Sónia Braga pela eternidade como a cena de abertura do filme da Gabriela, com que encerro este, e depois da qual nos poderíamos encomendar ao criador. E a menos passageira afirmação de que a nudez da Gabriela não é menor do que a de Clara, à porta dos setenta, e nós desejamos sem culpa a mulher que nos fez homens da mesma forma que há quarenta anos, e todos nós beijaríamos hoje e para todo o sempre o chão que Sónia Braga pisa. Amém.

PG-M 2017

2017-03-03

Marion forever (and ever, and ever, and ever)

Marion perfeita, como nunca. 
Este é um alerta urgente e essencial para cinéfilos, já que de nada vos vale cruzar o imdb com o metacritic, neste caso. Já aqui tenho escrito que eu já era fã da Marion Cotillard antes do merecido óscar por "La Môme" (não foi merecido, foi obrigatório).
Vi-a dispersar-se um bocadinho em Hollywood e em inglês. Mas também a fui vendo reencontrar-se com a grande actriz que é. Bom, não é grande, é maior. Mas nunca tinha visto tudo o que gosto nela, ponto por ponto, luz por luz, sombra por sombra, num só filme. Esse filme é, no original, "Mal de Pierres", que em português ficou com o título lamechas "Um instante de amor", mas é tudo menos isso (não é lamechas, nem o amor, neste filme, pode ser visto como um instante). É um filme completo e até algo inesperado. Acima de tudo, é o Olimpo para Marion, é um festival de Marion, totalmente esquecido pela academia americana, mas amplamente nomeado para os Césares (melhor actriz, claro, mas também a excelente realização de Nicole Garcia, entre outras nomeações), para a Palma d'Ouro, em Cannes, etc, etc.Quando penso que andam aí com La La La para cá, La La La para lá, e filmes como estes se perdem no ruído. Como diria a minha amiga Ana Saramago, com o seu hardcore fofo, La La La o c.! Marion forever, isso pode ser debruado a ouro! Não percam, sim? E depois digam se tenho ou não razão    

Ps: recordo o que escrevi em 2008: 

"Antes que o Óscar te queime a substância querubim de incêndios dourados, Antes que venham os iluminados decidir que a tua excelência não se pode consentir (o que raio é o overacting?), afinal tens toda uma pátria aos pés, e agora o mundo, e eu, este anónimo que teima em ver as estrelas de frente, as do céu não as caídas do cinema, e que desde o minuto um, depois de ter ver possessa de Piaf, aquele minuto em que desembrulhamos o corpo da magia do cinema e nos levantamos do lugar, calcamos as pipocas sobre a alcatifa e declaramos, já com a luz branca do shopping a surgir pela porta

- Magnífico!

Repara que eu nem sequer sabia que tu eras uma menina quando te vi levar "La Môme" até à morte, só podias ser uma actriz francesa consagrada que a selecção de Hollywood não tinha deixado chegar, depois procuro-te e sei que és bonita não complexa como Piaf, és elegante, mesmo olímpica, não mirrada como Piaf, és transparente e não negra como Piaf, vejo o filme de novo e ainda fico pior, mais inquieto, será que o Cinema vai deixar passar este monumento em claro?

Não deixou.

Ganhaste em casa o César, o improvável Bafta na Britânia e agora o universal Óscar, e mais quinze ou dezasseis prémios todos merecidos.

O que fizeste no "La Môme" ("La vie en Rose" em Portugal) é inefável. Tremendo.Não sei para onde vais, Marion, gostava que não fosses a lado nenhum de especial, mas a verdade é que, do ponto de vista divino, já és deusa, e nunca se é deusa cedo demais.Ficas para sempre, gostava apenas que ficasses mais um pouco e não fosses Monroe, Dean, Phoenix ou Ledger.

Hoje fui buscar a minha bisavó Germaine Lechartier, lá acima às memórias de um impreciso noroeste francês, para dar sentido ao meu sangue que fervilha como se fosses cá de casa."

PG-M 2017