2017-05-13

Já ganhámos

 Nota prévia: este artigo foi escrito na manhã da vitória, mas, sinceramente, não era difícil prevê-la. O mundo inteiro apontava para ela. Junto no final o vídeo da semi-final do Eurofestival, com aquela que, das seis interpretações oficiais (3 domésticas e 3 Eurovisão, incluindo as da vitória) foi a minha preferida;

Sabem o que se usa nas redes sociais? Escrever assim amanhã, quando o Salvador encher as capas de todas as revistas e jornais, não por ser um doente cardíaco bissexual*, mas por ter ganho o Festival da Eurovisão 2017, em Kiev, "eu, no dia da semi-final doméstica, disse logo que este rapaz e esta música eram do outro mundo". Ou seja, é por minha causa que ele vai ganhar. Não é. Mas vai ganhar. Na verdade, já ganhou. E é curioso que a minha admiração tenha deixado de se dirigir ao compatriota e à bandeira portuguesa, que certamente serão uma parte do gozo, da emoção e do orgulho. A minha admiração dirige-se à universalidade e beleza da canção e à universalidade e singularidade (parece contradição, mas não é) do próprio Salvador. Creio, como se rezasse uma prece, no que vou dizer: a Luísa Sobral escreveu uma das melhores canções dos últimos séculos, não da década, não deste século, não deste e do anterior, mas de sempre. Tenho dito que é uma espécie de "Yesterday", mas é muito mais bonita. Não está em causa o mérito da Luísa, mas calhou. A conjugação das estrelas, do tempo, do momento, das redes sociais e a singularidade do intérprete fazem o resto. Também não acho que se devam preocupar com o legítimo direito ao cinismo e à fuga à unanimidade. Deixem-nos, coitados, porque já lhes basta sentirem-se sempre infelizes e não serem capazes de tomar o imenso banho de luz que esta canção dá cada vez que é cantada e não só pelo Salvador - eu já vi todas as sensibilidades rendidas, desde o bêbado de tasco até aos domésticos, dos agricultores às sopranos, mesmo os que, a princípio, aderiram a outras músicas e estranhavam o histrionismo ou a expressividade ou a singularidade do Salvador. Na verdade, essa "diferença" é só a marca do inérprete, é um factor mais na parte menor: a liderança de casas de apostas e a vitória num festival. Mas a canção está acima do Salvador e da Luísa, está já pelo mundo inteiro. A letra, em toda a sua simplicidade, agrega milhares de páginas de filósofos. Esta coisa de o amor ser tão elevado e intenso que chega para os dois e dispensar um deles de o sentir é, afinal, a história de séculos de mulheres, principalmente de mulheres, esses seres superiores. Não admira que tenha sido escrito por uma. Depois da semi-final doméstica, a canção já era trauteada nos carros a caminho do trabalho. Depois de ter ganho o Festival da Canção e ser o legítimo representante de Portugal na Eurovisão, começou a ser cantada, imitada, mimetizada, pela Europa toda, com Espanha
como a principal entusiasta, porque, afinal, com a excepção de "devagarinho" e "pelo", as palavras são quase iguais em castelhano. A orquestração é magnífica e fixa logo dois terços dos ouvintes na abertura. Depois de ter actuado na semi-final da Eurovisão, então, não há limites. A canção é pedida na abertura de bailes de casamento em todo o mundo, é cantada pelos ucranianos em
português - sim, pelos vistos quase todos a querem cantar no original, e, aqui sim, é um serviço maior à nossa língua -, há já várias covers de altíssima qualidade, da Austrália ao Japão, do Japão aos EUA, que mostram que o mérito é da própria canção, e eu tenho a certeza de que a Luísa fez um clássico de todas as eras, que será interpretado por todos os estilos musicais. O próprio Salvador se encarregou de gravar para um amigo uma versão em flamenco. Vi a irmã e o Salvador nos ensaios gerais e há duas coisas curiosas: o Salvador é melhor intérprete do que a irmã para esta versão - esta é a primeira. A segunda é que, mesmo que o Salvador nunca se repita, fruto da sua alma jazzística, a canção sai sempre bem. Portanto, a Luísa fez uma canção à prova de bala. Durante anos queixámo-nos de que nunca ganharíamos isto porque o sistema estava "feito" para ganharem os países com maior emigração - a nossa não é baixa, mas não é a maior. Na verdade, se essa perversão tem alguma verdade, é o único factor que nos pode tirar a vitória hoje. Mas eu creio que ganharemos e que já ganhámos.
Na verdade, é todo o mundo que ganha, porque é uma das melhores canções de sempre que ganha. Encerro com um pequeno apontamento: bonitos os portugueses, aí sim. Em quase todos os comentários que li no youtube às várias covers e produções caseiras estrangeiras deste "Amar pelos dois", há sempre palavras de gratidão de portugueses.
É aí que somos grandes: chamamos os outros para a nossa celebração. E muitos vêm. Mas, na verdade, o que Portugal hoje leva ao palco é o universo. Esta canção já é do universo. Era bonito que trouxesse o troféu que já ganhou e que será falado pelos séculos adeante.

* dado o elevado número de leitores deste post, o que eu já previa em caso de vitória, voltei a experimentar daquelas reacções azedas dos que tresleram o que aqui foi escrito. Eu abro este post a apontar o dedo àqueles para quem este nosso músico, que ficará na história por todo o sempre, foi apenas vida privada. A esses e aos tiques das redes sociais. Não estou a expressar uma opinião ou a estipular um facto. É evidente que não a tendência sexual do Salvador e a vida privada são apenas fait-divers para vender.  Não dele. Não da essência deste momento notável. Muito menos meus.

Nota póstuma: no dia da nossa primeira vitória na Eurovisão o Benfica foi tetracampeão pela primeira vez e o Papa Francisco I visitou Portugal para o centenário das aparições em Fátima. A cobertura televisiva de Fátima foi de grande qualidade. Quanto ao resto, isto foi o que eu escrevi uma hora depois da vitória: "Tenho pena que o Salvador não tenha ganho num ano em que o FCP fosse campeão, para eu mandar à merda certas televisões que anunciam em rodapé, sem tirar as imagens dos Aliados (seriam os Aliados) do ecrã, uma vitória histórica e emocionante de pelo menos três gerações de portugueses que viveram isto ano a ano e fracasso a fracasso, com músicos tão bons ou melhores, e não pensarem que era decesso de poder de encaixe. Não aceito um certo jornalismo e uma certa falta de visão. Eu estava num shopping com as televisões todas a dar a vitória no futebol e nenhuma sintonizada na RTP1, mas quando foi certa a nossa primeira vitória na Eurovisão foi um bruá belíssimo pelos pisos todos. Graças aos telemóveis e às apps que tanto criticamos. Eu sei que este país vai saber celebrar isto, mas tenho pena que não haja coragem nas televisões que não transmitiram o festival para afrontar esta miséria da cultura futebolística por um momento tão belo. Subitamente, como ele próprio disse, ganha o que importa, ganha o que é, não o que parece. Se o FCP tivesse sido campeão, eu queria lá saber. E que diferença faria uma noite de glória da música portuguesa em três semanas de festejos ciclicamente repetidos? Ah, eu sei. É o dinheiro dos anunciantes, os que pagam tudo, mesmo os empregos. Vendamos tudo ao desbarato, pois."

 

PG-M 2017
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