2017-06-12

Somos todos (“verdadeiramente”) Bukowski ou como ser cínico e amar

 Eu não podia estar aqui. Não devia estar aqui agora, na "suite presidencial" de um hotel de asco pegado a um mall gigantesco nos arredores de Nova Iorque. Não, não, já perdi a frase. O Bukowski teria dito o lugar exacto, a rua, o beco, e não ia escolher um hampton qualquer, nem pensar em escolher o fio de baba tóxico de um hampton qualquer, ia para o outro lado, para sul, para o meio do barulho e da fealdade, das sobras da américa, onde dissecaria de forma meticulosa o ciclo de vida das lagartas nojentas que penetram a grande maçã até à inconsciência. Aqui, nesta merda de lugar, ainda se fuma e eu estipulo que sou advogado num escritório de advogados em Manhattan que ocupa dois edifícios e tem mais população do que esta parvónia de onde eu não consigo sair desde puto sob o estiolado pretexto das raízes, mais uma mentira urbana que me levará depressa à morte. Estou farto de gastar dinheiro, mas ainda não estou suficientemente farto de o ganhar para os mandar a todos à merda, o que eu já deveria ter feito. Era o meu máximo objectivo ao dobrar os cinquenta – ainda vivo aqui para os mandar a todos à merda antes de me afeiçoar à lapidação da ilha mais desejada e sobrevalorizada do mundo.


Estou a dispersar. Na verdade, só abri este texto para declarar a minha amizade a duas personagens ficcionais que estou a criar para o meu último livro, aquele que vou deixar inacabado, mas ainda não afinei o cinismo para o dizer de uma forma suportável para mim próprio. Se não é para mim próprio, para eles pode ser fatal. São um homem e uma mulher.


Nunca detestei o homem. Só não gostava da personagem que ele tinha composto em público. E é irónico eu dizer isto, porque, no regresso de carro de um festival literário no México, tínhamos mil quilómetros pela frente e não íamos estar calados como no avião entre Nova Iorque e Los Angeles, ele disse-me que a minha personagem pública era má e que eu tinha de fazer alguma coisa para mudar isso. Hoje eu sei que o que ele queria dizer é que eu não era suficientemente cínico e que um ser humano, qualquer ser humano em qualquer ofício, não pode aparecer aos outros como uma pessoa sensível e virtuosa, rodeada de amigos, principalmente de amigas, portanto um incorrigível onanista. O que aconteceu depois foi assombroso. Embora eu tenha a certeza de que, ainda hoje, ele não gosta verdadeiramente de mim, conseguiu que eu gostasse verdadeiramente dele. Passei a observá-lo com honestidade e lealdade, o que não fazia antes. Nunca lhe fiz mal, nunca disse mal dele a ninguém, excepto à minha mulher – mas isso não conta, como sabemos – , mas não queria saber dele. Quando nos informaram da editora que íamos estar juntos no México, e, pior, íamos juntos num avião e num carro e que, provavelmente, até dormiríamos juntos, por contenção de custos e partilha de quartos em hotéis de asco como aquele onde escrevo isto, creio que o desespero e a ansiedade tomou conta de ambos. Para lá ainda foi. Para cá, ele teve de falar. Reflecti sinceramente no que ele me dissera, disse-lhe que ele não tinha razão, mas tinha. Não a tinha toda, mas tinha metade dela, e ter metade da razão é tê-la toda, por não haver, no nosso século, tempo nem condição para conceitos muito claros, muito menos precisos. Eu, por ser suficientemente burro para me achar inteligente, adequei a minha existência pública a metade dos ditames do rapaz. Portanto, a metade da razão. O que é curioso é que ele próprio se encheu, quase até ao desespero, de ser um cínico urbano e declarou aos seus amigos radicais que ia abandonar a seita. Abandonou a seita e abandonou Nova Iorque e foi viver com a mulher para a ilha onde tinha nascido, uma ilha que ninguém conhece em frente ao farol de Montauk, só visível do céu durante dias límpidos de verão, que em Montauk são dois ou nenhum. Aí, a infinita curiosidade dele, que, quando misturada com cinismo, era insegurança descarnada, perdeu cinismo e ganhou paciência e sabedoria. Então ele começou a crescer. E crescer até um ponto em que, mesmo que seja pequeno, como eu, já me parece maior do que os nossos pares. Reconhecido, nunca deixei de lho dizer, passo a passo, o que ia vendo. Hoje ele até consegue ver em si próprio que a forma bem articulada como leva todas as suas intervenções sobre qualquer assunto é insegurança e timidez. Nas entrevistas, quase não lhe fazem perguntas, ou, as que fazem, já foram antecipadas por ele. A questão é que esse discurso articulado vai melhorando cada ano que passa. Se ele é humilde ao ponto de preparar e pensar aquilo que vai dizer e depois chega lá e diz tudo, ao ponto de não conseguir encaixar o humor e as indirectas como antigamente, na altura em que a vida dele era apenas humor e indirectas, tornou-se talvez o primeiro ser humano em que o decesso de humor, sendo uma limitação, não o tornou pior pessoa, pelo contrário. É simples e humilde, deixa as folhas em branco para nelas escreverem. E eu escrevo hoje essa espécie de declaração de amor para lhe dizer o que, sei hoje, ainda lhe falta. Foi claro na última intervenção pública que eu lhe ouvi: falta-lhe voltar a ser ilhéu. No conteúdo, no que mostra vindo de dentro, todo ele é genuíno, ainda que pensado e preparado, mas ainda fala como um novaiorquino afectado de Manhattan. Manhattan perdeu a condição de ilha, porque é a praça do centro do mundo, o mais ligado de todos os territórios. Mas ele é ilhéu. Nasceu e vive numa ilha cuja identidade hoje assume e promove. Perderá, um dia, o tom afectado de Manhattan. Nesse dia, será o mais perfeito de todos os imperfeitos pares. E eu torço por ele. Do fundo do coração onde o deixei chegar, ainda que eu não esteja no dele. Não faz mal. Nós, os falsos cínicos, os que precisam da voz de Bukowski para dizerem as coisas mais bonitas
como as cidades as comem , sempre quisemos o bem dos outros mais do que o nosso.


Já para ela, escrevo porque ela falou da intimidade literária numa entrevista e há no presente – e do presente ninguém fala – ilusões de aproximação e regressão, decisões de erradicação e dispensa de pessoas e grupos e mesmo de vidas inteiras. Escrevo para todas elas, as mulheres da minha vida, e há-as a chegar todos os dias, embora cada vez menos, mas para isso decidi reescrever à luz de Bukowski o meu único livro que é verdadeiramente auto-biográfico – antes disso, vou alinhar em grupos de sevícia a autores ou artistas que voltem a dizer publicamente que todos os livros são auto-biográficos, podemos arrancar-lhes os pêlos do cu a frio, por exemplo, a eles e a todos os assassinos da palavra poetisa: ainda tolerava que chamassem poetas às poetisas nos cem anos que se seguiram às poetisas menores, às meninas dos prostíbulos e dos versinhos, mas nenhuma mulher que escreve poemas decentes precisa já do desplante de lhe negarem – ou de negar a si própria – a palavra feminina para o que ela faz ou diz: apenas poemas. Ainda que um poema lhe possa conceder a vida eterna, não, nunca uma mulher de corpo inteiro será poeta. Para tal, passo a oferecer o rascunho de um poema definitivo que pode substituir a sevícia dos pêlos arrancados a frio. Mais tarde o arrumarei por versinhos:

poeta, assassina, poetisa, e também temos sem vírgulas

não existe uma só poeta mas existe uma só Sophia as poetas (que não existem) chamam-se a si próprias isso (porque a Sophia quis ser poeta e elas querem ser Sophias – mas não são) (ou então querem professar Sophia e ela não quer ser professada) (ou então querem divinizá-la e ela nunca o consentiria) mas não há poeta nenhuma depois de Sophia não há poeta nenhuma depois de Sophia não há poeta nenhuma depois de Sophia e como é óbvio poeta assassina poetisa e também temos com vírgulas os tempos mudaram não sejam ridículas em meio século nem a puta do verbete com dois géneros conseguiram só mania só manias só tiques (poeta nenhuma)

Finalmente, a ela, não à Sophia, mas à mulher a quem hoje dirijo uma espécie de declaração de amor, se a amizade for isso, digo-lhe o seguinte:
Muito antes de teres a coragem de fugir para Paris, muito antes de seres despedida de forma crua em Nova Iorque, onde dois anos antes te tinham dito que serias a obreira de um suplemento literário que seria mítico pelos anos vindouros, eu ouvi-te. Ouvi-te sem programa e sem futuro. Ouvi-te no presente. Nunca te penalizei com o corpo. Nunca te exigi nada, muito menos tu a mim. E sabia que, para um mero café, terias de ter muita coragem. Neste presente não é fácil deixar o conforto das teclas, que podem bastar para se dizerem coisas substanciais, para o desconforto de um espaço com pó e máquinas de moer grão e cheiros, os nossos cheiros, a preocupação de tomar pastilhas para o hálito ou escolher o perfume certo, a esperança de que os nossos defeitos não esmaguem a primeira impressão, sei isso tudo. Mas entre nós aconteceu tudo ao contrário: não houve qualquer intimidade ou ilusão literária. Eu limitei-me ser ostensivo quando assumi que “escritor” era um adjectivo meu desde sempre, que não precisava de autorização dos que se prostituem, verdadeiramente, há décadas, para terem algum domínio sobre o meio literário autista e minúsculo, um meio feito de elementos, que, apanhados a sós e sem lhes ser exigido que vomitem sentenças, até são suportáveis, até escrevem, mas, apanhados em pequenos grupos e previamente amarrados em conjunto como vitelos para Rodeos em que eles pensam que são os cowboys, e não os vitelos, coitados, são insuportáveis e abjetos. E, quando fui ostensivo, ouvi. Ouvi os abismos, as ânsias, pressenti a pessoa valorosa que és e que estava, não perante mim, mas do outro lado da linha, a tentar ser o mais verdadeira que conseguia apenas com teclas, e eu, apesar de acreditar cada vez menos nas teclas, sabia que as tuas teclas eras tu. Cada vez que vejo o teu trabalho, cada vez que te ouço, sinto um orgulho quase paternal, e este orgulho paternal não tem nada de paternalismo, pelo contrário, é uma das virtudes humanas, que há quem chame mais genericamente de empatia, mas é mais do que isso, vai mais longe, é verdadeiramente isento de corpo e, no entanto, embora não haja cobranças entre amigos, pode haver dívidas incobráveis, e a tua única dívida perante mim é física, é um café em que deixamos que o silêncio se habitue à nossa presença, em que tentamos perceber se é possível estarmos calados ao lado um do outro sem dizer absolutamente nada e mesmo assim sermos importantes um para o outro e ser importante continuarmos ali, calados. Pelos anos fora, tomei várias decisões, sendo uma delas deixar que a ilusão da amizade me tomasse e deixar que o seu contrário, exactamente o seu contrário, a ilusão da estranheza, vencesse. O tempo, sempre o tempo, diz-me que venceu a ilusão da amizade, ao ponto de ter passado a ser real. Esse café? Não importa, pode ser às portas da morte de um de nós. Convém apenas que aconteça para que a falta dele não passe a desventura. E tu saibas que, quando penso ou digo que gosto muito de ti, não estou a usar a leveza e a facilidade das teclas e das existências virtuais.

Obrigado, poeta. Obrigada, poetisa. Que provavelmente não são poeta nem poetisa. Mas serão amigos no México, em Nova Iorque, em Paris. Poeta, poeta, é Sophia, e não há poeta nenhuma depois de Sophia.

PG-M 2017